quinta-feira, 1 de maio de 2025

O inferno são os outros

"O inferno são os outros. Projetamos nos outros a nossa realização 
e aguardamos deles algo que amenize o vazio que nos habita."
Sartre


O bêbado que vai de boteco em boteco, cada vez bebendo mais e, em cada lugar que passa conta em voz alta sobre sua desgraça de ser corno. Ao final de um dia a cidade toda está sabendo e comentando. Então, o chifrudo de ressaca quer tirar satisfação sobre os boatos e escolhe seu algoz alegando ser este o culpado de toda a fofocaria. Até entender que boteco não é setting terapêutico e que tudo saiu de sua boca, não de terceiros, ele já terá brigado com a cidade toda. Portanto, se for corno e quiser sigilo, não beba para não se vitimizar frente à tragédia que você mesmo causou.

Tem mais, uma pegadinha viralizada nas redes sociais trouxe uma outra óptica sobre como certos tipos de personalidade culpam terceiros pelas consequências de seus atos, suas escolhas e suas imprudências. A cena dessa pegadinha mostra um cara andando na calçada com o celular na mão e batendo com a cabeça numa porta de comércio fechada. Automaticamente ele leva a mão à cabeça e começa a questionar três senhores ali sentados do porquê eles não o terem avisado que a porta estava fechada. A conversa se estende e ele o tempo todo culpa os senhores pelo incidente. Apesar de ser uma pegadinha existe uma moral que soma aos outros casos desse escrito. O inferno sempre será o outros.

Em se tratando de vitimização, a série VOCÊ (Netflix) retrata sobre a vida doentia de um sociopata manipulador e narcisista que sempre se coloca em posição de vítima para justificar seus atos criminosos. Joe Goldberg traz consigo o discurso de ter sofrido abuso psicológico e violência física na infância, o que de fato não fica comprovado até a última temporada exibida. 

Tanto no caso do bêbado, como no caso da pegadinha e o personagem da série VOCÊ sentem-se vítimas das circunstâncias, da sociedade, das pessoas, do destino, da vida, dos eventos que lhes causaram prejuízos vários. Mas, de qualquer forma, também em comum, não assumem suas culpas, e jamais conseguirão se entender como culpados. No caso de Joe, mesmo após desmascarado, acusado e sentenciado judicialmente, ainda assim questiona o porquê das pessoas não o verem como vítima e como uma boa pessoa. Seu eu, tão narcísico, é incapaz de assumir qualquer culpa. 

Não precisamos de muito para notar que existem pessoas com esse tipo de personalidade, que precisam de plateia para suas histórias nem sempre tão verdadeiras, nem sempre tão sinceras, e por vezes, nem tão reais. Em sua maioria, ocupam um papel de vítima e fazem dos que as escutam suas próprias vítimas. Elas não ultrapassam o seu recorte cognitivo temporal e enviesado, permanecendo num ciclo vicioso sem sair do lugar, sem vontade de superar, sem evoluir em si mesmo e, enquanto o mundo gira, a pessoa patina na saliva da própria ignorância cognitiva. 

A célebre frase do francês Jean-Paul de Sartre, "L'enfer, c'est les autres", que em português significa O INFERNO SÃO OS OUTROS, traduz um pouco desse processo de renunciar a culpa e assumir a vitimização, escolhendo e sentenciando a bel prazer todo aquele que não comunga de sua visão de mundo. Para os protagonistas dessas três histórias, o inferno sempre serão os outros, jamais eles. Da forma que a vida imita a arte e a arte imita a vida, podemos perceber ao nosso redor figuras semelhantes a esses três personagens na família, no trabalho, na igreja, na sociedade, na universidade, no mundo.

Uma matéria sobre "Vampiros Emocionais", publicado na revista Exame em outubro de 2024, contribui para a composição desse escrito, uma vez que esses tais "tendem a ser reclamões, a focar nos seus próprios problemas e a não se importar com os problemas dos outros. A sua energia negativa e a sua falta de empatia podem levar a uma sensação de exaustão e insatisfação para quem se relaciona com eles." 

Da mesma forma, o vídeo do professor José Geraldo da UNB, na Câmara dos Deputados, respondendo a uma deputada diz o seguinte: "(...) Eu não tenho como discutir com a deputada porque a sua visão de mundo, a sua percepção como cosmovisão, só lhe permite enxergar o que a senhora já tem escrito na sua cognição. Então a senhora vai ver não é o que existe mas o que a senhora recorta da realidade. A realidade é recortada por um processo cognitivo de historicização. Então eu não posso discutir um tema que contrapõe visão de mundo, concepção de mundo. Eu vejo outra coisa. (...) São referenciais que significam que o real não é aquilo que existe mas é a representação que a gente faz, de como a gente vê. Paciência né! Por isso que há pluralidade de concepções de mundo."

Enfim, ao longo do tempo acadêmico, com estudos aprofundados e pesquisas além do conteúdo proposto, corroborando com isso experiências concretas com pessoas que se assemelham às personalidades citadas acima, entendo que, em certas ocasiões é melhor direcionar ou encaminhar a pessoa em questão para profissionais. Ainda mais se, a mesma for do tipo que não consegue ter uma separação entre os papeis e suas funções. Filtro e abstenção muitas vezes significa paz e saúde mental em equilíbrio.

que argumenta sobre o recorte cognitivo que a uma deputada tem sobre determinado assunto e isso limita sua visão de mundo

sábado, 26 de abril de 2025

"Eu vos deixo a coragem"


Quando perguntado a Jorge Mario Bergoglio, na Capela Sistina, se aceitava a escolha, disse: "Eu sou um grande pecador, confiando na misericórdia e paciência de Deus, no sofrimento, aceito". E, a partir desse sim, de comprometimento fiel e inquestionável, deixo-me levar à profundidade do legado de Francisco e discorrer em sentimentos de gratidão e abastecendo-me de seu exemplo de coragem.

"Aceito.
Levar a doçura aos corações sofridos
Trazer a compaixão aos corações difíceis
Transbordar a misericórdia aos que não se perdoam
Exalar amor à toda vida
Ensinar humildade aos cantos do mundo
Acender a esperança aos olhos da humanidade
Abrir as portas da igreja e da vida ao mundo e às vidas
Meu nome é Francisco
É o meu nome de guerra e perdurará na coragem
E eu vos deixo a coragem."

Francisco

segunda-feira, 21 de abril de 2025

Francisco vive!

* 17/12/1936 + 21/04/2025

Jorge Mario Bergoglio, o argentino gente boa que em sua extensa travessia sacerdotal chegou ao mais alto grau hierárquico de uma das maiores instituições religiosas do mundo, a Igreja Católica Apostólica Romana - ICAR. Enquanto Bispo de Roma, lutou com punhos firmes contra os desmandes eclesiais, as fraudes financeiras no Banco do Vaticano e as pompas do ultraconservadorismo radical travestidos em cardeais brocados de ouro Ofir. 

Chegou a papado no dia 13 de março de 2013, aos 76 anos de idade, como o 266º sucessor à cadeira de Pedro, o cargo mais importante da Santa Sé. Primeiro Jesuíta, primeiro latino americano, primeiro não europeu em mais de 1200 anos, desde Papa Gregório III. Quando lhe foi perguntado, na Capela Sistina, se aceitava a escolha, disse: "Eu sou um grande pecador, confiando na misericórdia e paciência de Deus, no sofrimento, aceito". 

A escolha do nome, Francisco, por si só tem um peso de leveza que se contrapõe ao papado de seu antecessor, Bento XVI, esse que, enquanto Cardeal e chefe da Congregação para Doutrina da Fé, a conhecida e trágica "Santa Inquisição", dirigiu com mão de ferro mas, empossado e detentor do poder e do trono de Pedro, sucumbiu aos descaminhos de seus subordinados e preferiu entregar o bastão a enfrentar os lobos de frente.

Admiração e respeito por esse ser humano. Foi diferente. Fez a diferença. Trouxe doçura, compaixão, misericórdia, com atitudes de amor e humildade. Reacendeu com a chama da esperança o coração dos excluídos, das minorias, dos que são deixados à margem. Com a comunidade LGBTQIA+ abriu as portas ao diálogo e isso incomodou muita gente que se escorava na "santa doutrina". Catolibãs de plantão, feitos urubus por carniça, espreitavam por um momento de fraqueza de Francisco para devorá-lo vivo. Mas, Francisco é um forte, um destemido! Sabe de onde vem e a que veio. Sobrevivente de tantas guerras, não seriam raposas velhas de um sistema arcaico a desencorajá-lo.

Bergoglio escolhe não um nome de santo, mas um nome de guerra, pois sabia que precisaria de uma armadura forte para enfrentar aqueles que se sentiriam incomodados em suas ostentações. Francisco trouxe luz, com uma nova roupagem. Não foram poucas as máscaras que caíram. Seu antecessor não teve peito para enfrentar a desordem sistêmica e preferiu se retirar de cena. Enquanto chefe da Congregação para Doutrina da Fé, caçava veemente suas bruxas, fazia e acontecia, mas na cátedra papal, a coragem e o poder foram se esvaindo feito areia na mão. 

Não prometeu nada. Entregou tudo. Foi Humano. Foi Francisco. Lutou contra as mazelas de poder e corrupção dentro dos bastidores da própria estrutura. Manteve as porta abertas e criticou os fiscais da fé e suas hipocrisias. Não usou das regras para exaltar o poder da igreja. Ao contrário, fez valer a escolha de seu nome valorizando cada ser humano e acolhendo conforme o verdadeiro ensinamento: amor. Combateu o bom combate. Francisco vive!

Francisco foi inspirador durante sua vida e, com toda certeza, seu legado continuará vivo e presente em nosso meio. 

domingo, 20 de abril de 2025

Resenha Crítica - "Cilada"



Essa potente história baseada na obra de Harlan Coben carrega diversos temas sensíveis, pesados e que podem despertar gatilhos. Tendo em vista a intensidade com que cada assunto é tratado e desenvolvido, ficção e realidade se misturam e confundem o olhar e o coração do telespectador. 

Mistério, drama, psicológico e investigativo, a trama aborda desafios online, auto mutilação, adolescência, bebidas, drogas, sexo, acidentes, homicídios e luto. Nesse cenário algo intrigante chama a atenção, uma falsa acusação que resultou na caçada de um homem inocente. Uma jornalista, que baseou-se numa pseudo evidência para encontrar um suposto abusador, colocou os holofotes do julgamento midiático sobre a inocência e a reputação desse homem que tem um fim trágico.

Antes de ter sua reputação destruída esse homem fora traído de forma ardilosa quando seu melhor amigo arquiteta um plano para conseguir sua propriedade, que além de extensa tem nela um centro de acolhimento para menores. Acusado, sentenciado, com a vida manchada e como principal suspeito no epicentro dessa conspiração, o proprietário da terra e diretor do abrigo torna-se foragido e é caçado feito animal. A única forma que o falso amigo teria para conseguir a propriedade era fazer com que o proprietário da terra e diretor do abrigo fosse acusado de algo grave e assim aconteceu.

Cada cena nos leva a uma reflexão profunda sobre as temáticas pontuais que nos cercam. Entre tais questões de extrema urgência o contraposto que assola a existência humana se dá na ganância, na ambição sem fim que coloca em check toda e qualquer relação. Isso é histórico, cultural, político, familiar, religioso, humanamente demoníaco, mas ta aí, sendo repetida cotidianamente em todo e qualquer ambiente. A arte nos faz lembrar do que podemos ser e do que somos de fato. Uma incógnita.

terça-feira, 1 de abril de 2025

Resenha Crítica: "1883"



1883, série da Netflix, retrata a saga de uma família em busca de um pedaço de terra para construir sua morada. Nessa travessia ela se junta a imigrantes liderados por dois oficiais que irão guiá-los nessa jornada. 

O cenário, repleto de lindas paisagens, montanhas verdejantes, planícies abertas e rios de água cristalina, se dá no tempo do velho oeste norte americano, tempo esse em que as divergências se resolviam na bala e na flecha. 

Batalhas realistas que trazem à tona tanto a justiça quanto a crueldade humana marcam momentos de tensão nesse drama. 

Amores improváveis entre pessoas de raças diferentes consolidam a audácia e a coragem do amor resultando num clima romântico.

Além dos diálogos intensos sobre a esperança e a dor, o futuro e a incerteza, a coragem e o medo, a vida, a morte e o luto, a narrativa da jovem personagem que desbrava não apenas as terras ao lado de seu pai e sua família, mas toda a liberdade a que tem direito, contribui para uma reflexão ainda mais profunda.

Ainda sobre a vida, os capítulos finais retratam o morrer e o luto antecipatório de forma marcante e intensa, o que nos leva a uma viagem interior em busca de sentidos próprios para a verdadeira essência de nossa existência.

Sábias filosofias épicas, que discorre em pensamentos e diálogos, mergulham no mais íntimo do ser humano. Brutos se amansam, medrosos se levantam, ambos regados da coragem em transpor suas próprias muralhas. 

Um grande e verdadeiro espetáculo em forma de drama que traz a pureza, a sabedoria, a dificuldade e a honra no velho oeste americano.