Já dizia Augusto dos Anjos em Versos Íntimos:
"A mão que te afaga é a mesma que te apedreja."
O sertão é o sozinho, é dentro da gente, está em todo lugar. Deus e eu no sertão.
Uma busca incessante incendeia meu coração. Olho para os lados como quem
espera que a resposta venha de algum lugar. Olho para o céu azul e vejo
apenas nuvens e pássaros. Pergunto-me: o que buscas? O que te falta?
E o silêncio dentro de mim se
mantém. Não sei dizer. Seria dinheiro, um carro novo, um bom emprego,
status? Não tenho a resposta certa, mas sinto que essa busca vai muito
além das coisas efêmeras deste mundo. Seria tempo de qualidade, uma
ligação, um abraço de quem se ama? O que você busca?
A pergunta se repete dentro da
minha alma. Talvez eu até tenha a resposta. E, como uma mãe que
protege o filho de algo que possa feri-lo, minha psique, essa mãe protetora, me
guarda dessa verdade. Mas por quê? O que essa resposta poderia
trazer?
Seria a decepção de perceber que
passamos nossas vidas presos a coisas materiais, a futilidades, perdendo tempo
sem saber ao certo o sentido da vida? Ou seria porque a realidade é
simples demais para aceitá-la? Simples demais para reconhecer que a
resposta está no sol que aquece todas as manhãs, no brilho dos olhos daqueles
que amamos, esse brilho que quase nunca paramos para admirar. Está no
silêncio daqueles que se calam, na flor que desabrocha, no alimento que
sustenta o corpo e na oração que sustenta a alma.
O que você busca? Ainda não
tenho essa resposta. Mas a angústia e o anseio do porvir fazem meu coração
bater mais forte, correr como quem tem uma viagem marcada e quer aproveitar ao
máximo os dias neste lugar tão misterioso. E talvez, apenas talvez, a
própria busca já seja a resposta. Talvez seja esse caminho incerto, cheio
de perguntas, que nos ensina a ver o que sempre esteve diante de nós.
Um dia, era pra ser apenas mais um dia
de passeio com o Kinzé e a Mel ao redor da quadra, mas na metade do percurso um
rapaz nos avistou e parou para falar sobre os cachorros. Sentou-se na calçada e
esperou nossa aproximação. Mesmo sendo cortês Kinzé e Mel não deram
confiança.
O jovem se levantou e começou a nos
acompanhar rua acima. Estava de chinelo, calça, camiseta e um blazer. Aos
poucos foi se abrindo. Contou que alguém o acordou dizendo para sair do sol.
Falou de forma poética sobre a importância do sol e da lua.
"Você sabe que os animais dão
mais valor na gente do que muitos da família?! Tenho certeza que eles te
protegem. Eles te amam, te respeitam. Eu tô aqui do seu lado porque eles sabem
que não faço mal. Se não, eles não iam deixar não."
"Eu sou um anjo caído. Tô na
decadência. Você sabe o que é decadência? Eu só tenho o sol pra me esquentar e
a lua pra iluminar."
Chegamos à esquina e aí começamos a
nos despedir. Eu seguiria à esquerda e ele continuaria em frente. "Obrigado,
muito obrigado pelo tempo, por ter me escutado. Não esquece, eu sou um anjo
caído. Decadência."
Só pude escutá-lo com atenção. E isso
fez toda a diferença. Silenciosamente só quis ouvi-lo e prestar atenção em cada
olhar, fala e expressão. Sua gratidão me trouxe um sentimento de inquietação.
Na verdade eu fiquei grato por esse encontro do acaso.
"Sou um anjo caído, não esquece!
Ah, lembra de mim quando estiver no paraíso. Você sabe quem disse isso
né?"
Caminhando com ele de uma esquina a
outra, percebia o olhar das pessoas ao notá-lo. Suas roupas sujas, seu jeito de
caminhar e sua pequena bagagem numa sacola de plástico chamavam a
atenção.
Mas, no fundo o que ele quis deixar
nessa mensagem? O que ele fez se sentir o anjo caído? Não tenho respostas, mas
sensações e sentimentos que me conectaram ao ser humano que caminhou ao nosso
lado por um quarteirão. Um anjo que tem o coração puro, sem maldade com toda
forma de vida, em especial a dos animais. Caído, tombado, derrubado, machucado,
esquecido, rejeitado, excluído e condenado pela sociedade. São muitas as formas
de pensar e sentir. Faço questão de me ater apenas ao tempo de sua presença e
isso já valeu a pena. Com certeza não dá pra descrever essa cena com as cores
que vi e vivenciei porque tanto a cena quanto as cores foram únicas e aqui
permanecerão vivas na história, na memória e no coração. Obrigado anjo
caído.