quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

O filho do carroceiro.



...Ouço uma voz grosseira, um xingamento com palavra de baixo calão por algum motivo totalmente fútil. Uma maneira bruta e imprópria de corrigir o próprio filho, ainda mais na frente de terceiros. Um constrangimento desnecessário para uma criança entre 8 e 9 anos. Motivos do passado que talvez levem esse pai a ter atitudes drásticas com sua cria. Questões a serem avaliadas, discutidas, pensadas, mas em outra oportunidade. No instante, abstenho-me do julgamento desse pai, levando em conta o pesado fardo que carrega em seus ombros, por vezes mais pesado do que o seu cavalo consegue puxar pela carroça.

O filho do carroceiro vislumbrara-se com o suporte de copo descartável afixado na parede. Ao puxar a alavanca o copo cai de boca para baixo e antes de parar num ponto determinado enrosca-se numa haste que o faz terminar a suave descida na posição que uma mão o retirará. Nada de novidade, nenhuma tecnologia de ponta. Objeto fácil de ser encontrado por aí nos diversos estabelecimentos comerciais. Mas, para esta criança foi algo diferente de ser visto. Quase como um brinquedo novo... novo e impossível de se alcançar. Meramente sonhar com o que se vê na vitrine...

Senti uma ponta de culpa. Senti uma vontade de dar um brinquedo àquela criança já sofrida pela humilde vida que leva ajudando ao pai em sua profissão de carroceiro. Senti... extasiei... hesitei... e cá escrevo minhas dores alheias por conta da injustiça que ultrapassa gerações e sentencia à escravidão apenas aos descendentes dos escravizados pelo sistema.

E por falar em sistema... somos cúmplices deste que por sua vez não permite pensadores. Nós não permitimos isso! O simples fato de pensarmos que sabemos pensar faz-nos sentir diferenciados frente ao resto da massa. Adoramos sentir que pensamos além dos outros. Gostamos disso. O ego se aguça ao se deparar com outro ser que não alcançou espaço para pensar.

O filho do carroceiro, maltratado pelo pai, não entende seus xingamentos como uma falta de carinho ou respeito. É o limite que eles vivem. Um caráter e uma justiça enraizadas na simplicidade, simplicidade esta que não imaginamos que ainda exista. Somos hipócritas massificadores. Somos parte inerte do sistema que julgamos ferreamente. Somos este sistema. Talvez, em nossa labuta diária, solitária, sejamos apenas uma engrenagem que ao se juntar a outras tantas formam um sistema independente de egos cegos.

Somos cegados diante de nossa maestria. Somos covardes diante de algo maior. Somos hipócritas ao sentenciar um sistema que paralelamente somos e fazermos parte dele... Nosso ego se vangloria quando nos deparamos com culturas diferentes as quais julgamos ser inferiores pelo simples fato de não estarem ao par de uma determinada tecnologia ou não saber usar as palavras corretamente pronunciadas de acordo com as regras de nossa língua...

E no final, quem será mais verdadeiro, mais justo, mais puro? Quem será merecedor de uma recompensa gloriosa, eterna, celestial? Quem será tão digno, diante de sua vida justa, de uma paisagem para os olhos da alma, após o descanso final? Seriam os mais intelectos, os pensadores, os doutores, os manipuladores? Seriam os que mais detém posses, dinheiro, status, poder, fama? Quem?

Que sejam os libertos, os livres... livres de alma e de coração, de pensamento e de caminhar... Sejamos carroceiros, mas sejamos verdadeiros, puros, brutos, autênticos e justos... e livres.