quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Concertos de Mestres - Parte II



"Bença, vô!". "Bençôe", respondia de forma simples o meu saudoso Vô Dito. "O que o senhor tá fazendo?"  Ele mexia na torneira sobre a pia da cozinha com algumas ferramentas. Tirou-a e colocou um pano para que a água não inundasse a cozinha. Em seguida foi retirando o pano e encaixando um tampão. Rosqueou-o com firmeza para que a pressão da água não arremessasse para longe tampão e pano. "Pronto! Precisava di trocá a borrachinha da tornera. Ela tava passando. Tava pingano água. E num pódi disperdiçá água. E despois a conta vem cara no final do mêis."

Vô Dito não tinha muita leitura. Se virava como podia para ler e escrever palavras. Tropeçava nas letras para completar a frase. Foi comerciante e sempre tinha suas contas sobre controle, bem como uma boa economia guardada para ocasiões especiais. Talvez, fosse um costume antigo, ele sempre carregara consigo uma certa quantia de dinheiro no bolso. Perigoso para os dias atuais. 

Sem formação acadêmica foi um bom administrador de seus bens, conquistados com muito suor. Não fez nenhum cursinho básico de eletricista, pedreiro, encanador, carpinteiro mas sempre fez de tudo um pouquinho. Só em casos que superavam seu entendimento aí recorria a profissionais, do contrário, não tinha preguiça e botava a mão na massa. 

Noutra vez, chego em sua casa e o encontro com uma marreta numa mão e uma talhadeira na outra. Estava batendo na parede por sobre umas trincas que se formaram na parte superior da porta. Perguntei-lhe o que fazia. Ele parou suas marretadas e mostrando as trincas disse que era necessário fazer uma amarração com pedaços de aço para que elas não se tornassem maiores. Era preciso abri-las de forma que coubessem os metais, todos já cortados. Uma engenharia da sabedoria bruta. 

E quantas e quantas vezes o vi no quintal fazendo massa de cimento para tapar alguns buraquinhos na parede ou algum concreto mais pesado? Não foram poucas. Ele nunca me ensinou como se fazia as coisas mas eu vi. Cada cena ficou bem guardada e por consequência hoje também me viro nos trinta. A engenharia do improviso é algo em que gosto de utilizar o meu tempo. Reinventando.

Desde que ele passou a utilizar medicamentos para o controle da pressão arterial e outras coisas mais, eu já trabalhava em farmácia. Todas as vezes que retirava seus remédios no Posto de Saúde Municipal pedia para que eu separasse cada qual no seu lugar, sempre mantendo a ordem por vencimento. Fazia questão de comentar sobre outras enfermidades como o ácido úrico e o diabetes que vez ou outra alteravam. Contava-me dos remédios e seus efeitos. 

Lembro-me de uma noite que eu meu primo Kleber chegamos de última hora em sua casa para passar a noite. A Vó Cida, sua esposa, estava internada. Jogamos dois colchões de solteiro no chão da sala e nos arrumamos pra deitar. De repente, escutamos um grito seguido de um choro descontrolado. Vô Dito imaginou que o motivo de estarmos ali era porque a Vó estaria muito mal no hospital e por outro lado ninguém lhe contara a verdade. Custamos a fazê-lo entender que realmente só queríamos fazer-lhe companhia e que logo mais a vó Cida voltaria pra casa.

Enfim, estes são mais alguns consertos que aprendi sem ter frequentado escola alguma. O mestre passava a lição botando a mão na massa, desprovido de qualquer intenção de ensinar. A arte de ensinar simplesmente acontecia pelo exemplo. Eis o conserto que virou concerto para a vida. A você meu Vô Dito, obrigado por seu exemplo e por suas lições aprendidas e repassadas na faculdade da vida.

Benedito José de Oliveira - in memórian
* 30/12/1935
+21/10/2008