Diante de tantas injustiças e falcatruas que vemos por aí e que presenciamos no dia a dia, torna-se cada vez mais difícil ter critérios para distinguir quando uma pessoa que pede auxílio realmente esteja dizendo a verdade.
Fato: Aroaldo dos Anjos; de Volta Redonda (RJ); ex-aluno de engenharia elétrica; casado; dois ou três filhos... (pausa, para um suspiro...). “Deserto”, esta foi a palavra que ele disse e que de certa forma resumiria o momento e as dificuldades que ora tem passado. De boa dicção, assim como todo bom carioca, sem o odor de quem se embreaga nas “cachaças” da vida, ao contário, estava muito bem asseado. Seu pedido era simples: queria se ocupar de algo aqui no meu trabalho, por algumas horas ou pelo restante do dia e que recebesse o que achássemos merecido diante do seu desempenho.
Confesso que de ímpeto, quando ele se apresentou e logo perguntou se eu era o dono do comércio, o primeiro pensamento foi de pensar em um jeito de despachá-lo. Isso aqui na cidade onde moro tem se tornado quase que um comércio paralelo. Pedintes que atuam nos semáfaros dentre outros casos de pessoas que passam pelas ruas do comércio semanalmente pedindo ajuda financeira para voltarem às suas cidades de origem tem sido alvo de investigações policiais e muitos noticiários e reportagens na mídia.
Bom, algo me fez olhar em seus olhos e sua face e enxergar além... Não sei explicar, aliás, não consigo... E sei que por melhor que essas palavras descrevam tudo o que aconteceu neste ambiente de trabalho em menos de meia hora, sei que não conseguirão transmitir toda sensação do momento vivido...
Estávamos em três aqui na empresa. E sei que de certa forma todos sentiram a mesma emoção ao escutar as palavras daquele homem. Ele até mostrou um álbum de fotos que carregava em seu bolso juntamente com um boletim de ocorrência o qual mostra que perdera todos os seus documentos, além de passagens que guardava desde a cidade a qual seu projeto fracassou, Araraquara (SP). Havia deixado, pelo que percebemos, sua família em Volta Redonda, em busca de um investimento no mercado de carnes nesta cidade do interior de São Paulo. Por vários obstáculos, o qual dispenso descrever, o negócio não deu certo, aliás nem saiu do papel por conta das burocráticas normas para se estabelecer comercialmente. Perdera tudo.
Pediu-nos a gentileza para que acessácemos seu “orkut” com o propósito de ver se havia algum recado de seus amigos ou familiares. Nada.
Aldo, assim como está denominado em seu orkut, queria um trabalho temporário para este dia somente, receber com dignidade pelo serviço prestado, que fosse lavar uma privada, varrer a loja e a calçada, lavar um carro, não importava, precisava sentir-se dígno e humano novamente. Pedi um dinheiro emprestado no caixa da loja, por fim todos se comoveram e colaboraram. Juntamos um pequeno montante, o qual ele necessitava no momento. Demos pão e café.
Quando botou os pés para fora da empresa, seu semblante já era outro. Transparentemente feliz, renovado, muito mais pela atenção que lhe dispensamos ao que pudemos contribuir e oferecer.
Em suas fotos no orkut, no seio familiar, conhecemos sua mãe, seus filhos, irmã e esposa. Uma vida modesta e feliz.
Durante o tempo de nossa conversa, pedi licença pelo menos umas três vezes para não chorar junto com a face daquele homem. Ele precisava de auxílio e não eu de consolo. O momento era dele, só dele.
Ficamos ainda durante um bom tempo falando sobre o assunto, Aldo, a vida, as nossas vidas. Parece que nossos atos não nos significaram nada. Parece que poderíamos ter feito mais, ter acolhido mais, mas, tivemos medo ou receio de estar caindo nas lábias de mais um estelionatário. Valeu-nos a consciência e a coragem de ouvir sua história.
Particularmente, tentei enxergar além. Tentei ver naquela face sofrida e amargurada, exausta pelo “deserto”, o qual mencionara no início de sua apresentação, uma face divinamente humana, um rosto coroado pelas angústias do caminho percorrido, uma alma crucificada pela dor de suas próprias escolhas, uma face de Cristo, um Cristo divinamente humano e presente ali, na minha frente...
Acredito piamente, que Deus se manifesta nas adversidades. Ao contrário da imaginação fértil que tínhamos quando criança, de um Deus severo, de um Senhor de barbas brancas prestes a punir se desobedecessemos aos nossos pais, hoje a percepção é outra, um Deus humano, um Deus próximo, um Cristo expressado nas faces de tantos próximos que cruzam nossos caminhos.
Sei que algo novo marcou nossos caminhos e nossas vidas hoje. Sei que a possibilidade de nos reencontrar é praticamente nula. Mas sei também, que vou carregar no coração a face deste Cristo que por hoje tirou-me da realidade e me fez enxergar a face divina contida em tantos semblantes perdidos por aí... É Jesus, meu Deus humano...
Ailton Domingues de Oliveira
25/01/12