Iniciei recentemente a leitura simultânea de
"outras duas" obras literárias. Uma delas é o livro do Pe. Fábio de
Melo, "A hora da essência"(2021), e a outra é do Rubem
Alves (1933-2014), "Variações sobre o prazer"(2015). São
coisas distintas mas que dialogam na essência, na alma. Formas diferentes de
poetizar e conduzir o pensamento à uma reflexão ímpar. Fábio de Melo é
detalhista ao extremo nas expressões, no pensamento e na alma. Rubem Alves
consegue extrair poesia da menor partícula que podemos conhecer. Assuntos
diferentes, abordagens ainda mais, porém, ambos os autores e suas obras estão regados
de essência e travessia, amor e poesia.
Durante a leitura noturna, intercalando entre um
autor e outro, me deparo várias vezes com a palavra essência, nas
duas obras. Para encerrar minhas noites tenho me deleitado numa leitura simples
e não menos profunda de uma raridade que é Dom Helder Câmara (1909-1999), "Em
Tuas Mãos, Senhor"(1986). Essa obra eu adquiri ainda durante o curso
de Teologia, na antiga Faculdade Católica de Uberlândia. Havia lá um espaço
para doações e troca de livros. Quando vi essa relíquia obviamente não hesitei
e trouxe para casa. Helder Câmara, poeta, profeta e bispo da Igreja Católica, é
pura essência. Uma vida dedicada ao povo, aos pobres. Um legado espiritual que
vive entre os que se dedicam a uma "boa causa".
O mais incrível durante as travessias de leituras é
quando os autores que você admira e te inspira citam outras obras que você
também lê. Rubem Alves é fã de Friedrich Nietzsche (1844-1900), filósofo alemão
e João Guimarães Rosa (1908-1967), escritor e médico brasileiro. Do filósofo ele
cita diversas passagens de "Assim falava Zaratustra" (2008)
e, do escritor brasileiro, deixa pensamentos extraídos de "Grande
Sertão: Veredas" (1986). Essas duas outras obras também fazem
parte das minhas leituras cotidianas. Parece loucura mas não, estou fazendo uma
travessia tranquila por esses cinco livros, principalmente nesses dois
últimos. São obras que merecem ser degustadas sem pressa para não perder os
detalhes da travessia. Toda travessia deve ser apreciada, vislumbrar-se com o
percurso, a paisagem, a dificuldade e o aprendizado.
É fato que tem horas que me perco nos pensamentos e
citações. Agora mesmo estava procurando em qual dos livros foi citado um
trecho bíblico do livro de Eclesiastes onde fala "que debaixo do céu há um
tempo certo para cada coisa", mas não encontrei (rs). Faz parte, pois são
os riscos da fartura e da gula literária. Esse trecho me soa como uma
verdadeira oração poética e profética ou uma poesia orante profética, ou ainda
como uma profecia orante e poética. De qualquer forma ela também me remete aos
tempos de grupos de jovens lá em Piraju, à minha adolescência, regrada de
muitos sonhos e romantismo.
Essa noite perdi o sono madrugada adentro. Eram
mais de uma hora da manhã e precisei me levantar algumas vezes. Entre idas e
vindas à cama, esforço incessante para encontrar o sono, decidi não lutar mais.
Um chá de camomila e maracujá, com um lanchinho básico pra disfarçar a
ansiedade e saciar a pseudo fome de repente ajudaria a reconfortar o corpo e a
mente. Sem muito sucesso ainda parti para agressão encarando meus autores e
suas obras. Eu poderia terminar pelo menos um livro por inteiro devido à falta
de sono, mas não quis ser tão bruto. Contentei-me por umas horinhas apenas de
leitura e às três e pouco eu parti para a cama novamente.
Durante esse embate na madrugada algumas citações
me levaram à outras percepções e reflexões. Interessante essa teia de conexões
que estabelecemos com os artistas que admiramos e suas obras que nos inspiram,
motivam e muitas vezes iluminam as ideias e até mesmo a travessia. Rubem Alves
tem esse poder. Lendo-o, deparei-me com um pensamento que já carregava em mim
desde sempre. Algumas vezes citei-o para minha irmã e para meu filho: "tão
importante quanto se chegar em algum lugar é saber apreciar todas as
dificuldades e conquistas pelo caminho". Exemplificava também com a subida
pela montanha: "subir uma montanha olhando apenas para o pico, o ponto de
chegada, torna a caminhada um tanto vazia; é necessário degustar a paisagem em
cada passo e em cada volta rumo ao topo". Ao meu filho, durante a
preparação de sua festa de quinze anos, eu sempre o convidava a pensar no
processo e em toda a correria para o momento sublime e único que seria o dia da
comemoração de seu aniversário. A gente vivenciava a festa desde os primeiros
pensamentos, da organização e da noite em si. A travessia é o ponto forte de
toda partida e de toda chegada. Há que se cultivá-la.
Rubem Alves cita nessa obra, que "o
corpo dos amantes têm outras ideias que vão além do orgasmo e da fecundação e
que o objetivo do jogo amoroso é estar brincando". Compreendo
perfeitamente que o autor novamente aprecia e enfatiza a travessia até mesmo na
relação amorosa. Quando essa relação de fato é verdadeira ela é degustada sem
pressa, entre olhares, toques, pensamentos e entrega, em dois corpos que se
misturam e formam um. O amigo, que já o considero tão íntimo de minhas jornadas
pelas madrugadas de pensamento, exemplifica de outras formas também: "Na
conversa, o objetivo não é o final, a comunicação de uma informação, é o prazer
de estar indo. A caminho dos picos há vistas fascinantes. Desejo o prazer de
estar indo". Nesse trecho que ele cita os picos, eu juro que se
estivesse vivo lhe mandaria uma carta, sim uma carta escrita para dizer-lhe que
ele pensa igual a mim. Sem modéstia. Eu cito isso desde minha adolescência!
(rs). Enfim, tanto meu amigo quanto eu, temos um apreço pela sabedoria de
Riobaldo, personagem de "Grande Sertão: Veredas": "O
real não está na saída nem na chegada; ele se dispõe para a gente é no meio da
travessia".
Nietzsche, em "Assim falava Zaratustra",
diz que "Há sempre alguma loucura no amor. Mas há também sempre alguma
razão na loucura". Rubem Alves abusa deliciosamente do inquietante
filósofo e suas obras. A filosofia vira poesia e a poesia filosófa com a alma.
São pinturas de um artista das palavras. Lições de travessia para toda a vida.
Meu amigo também me ensina sobre outros autores e correlaciona tudo de forma a
me inspirar na ampliação do meu leque de pensadores. André Breton, que até
então eu nunca havia ouvido falar dele, já me soa íntimo quando o pintor de
palavras para a alma cita uma pérola desse desconhecido novo amigo: "E
o amor não conhece distâncias".
Enfim, não foi uma noite de insônia apenas, foi uma
madrugada que serviu-me para ler, pensar, sonhar... E lendo, deparei-me com
esse pensamento já conhecido, algo que sempre tive comigo: o importante não
está no início nem na chegada, mas na travessia, pois é nela que se vive, que
se aprende, que se ama. O amor é travessia. E eu amo amar. Ô se amo!