domingo, 22 de maio de 2016

Cartas em Tempos (VI) - Da rua

"A rua é minha casa.
A praça é o meu trabalho.
Talvez até seja o ponto de encontro com outras almas penadas que teimam sustentar seus corpos de zumbis.
Tudo na vida é uma guerra.
Tudo tem preço.
E daqui do meu lugar ninguém vê valor em nada.
Não tenho família, nem teto, nem nome, nem vida...
Sou um desertor dessa guerra, dessa vida.
Meu santo protetor das noites frias é uma cachaça de quinta.
O chão é o meu lar.
Na praça encontro outros zumbis sem passado.
Muitos eu desconheço o nome.
Isso não interessa.
Nos agrupamos numa espécie de proteção.
Sozinhos somos presas fáceis.
Já perdemos vários companheiros, vítimas de humanos desalmados...
Mas aí a polícia nos dispersa na sutileza das cacetadas.
Acho que inspiramos a vadiagem...
Ou talvez, estragamos a vista das praças.
É... pode ser isso mesmo.
As vezes, persisto em ficar no gramado em frente ao cemitério.
Lugar mais sossegado.
As pessoas parecem nos respeitar mais quando estamos lá.
E então me pergunto: qual a diferença entre os mortos ali enterrados e a gente que persiste do lado de fora?
Apenas um muro nos separa...
Eu, desertor da vida, combatente de mim mesmo, já me dei por morto em outras vidas...
Os que jazem enterrados, estes sim, estão num descanso de verdade.
Invejo sua paz...
Família?
Já a perdi quando nasci.
Não tenho pais, nem irmãos, nem parentes...
Eu desisti deles.
Não merecem.
Meus companheiros são de verdade e me respeitam.
Espero um dia não mais precisar desistir.
E nesse momento, com certeza já estarei deitado do outro lado do muro.
Soldado!? Resista firme!
Homem do sertão!? Eu te admiro!
Índio!? Você tem o meu respeito!
O do subúrbio!? Tome nota da minha história!
Um dia, quem sabe, a gente senta num banco de praça pra rir das desgraças da vida e tomar um gole de cachaça?!
Se não for aqui, que seja arriba ou abaixo."