Pensamentos, prosas e provérbios
Na contramão da imaginação
Na contramão da imaginação
Minha
arrumação teve de ser reajeitada
Era uma a
minha intenção
Saber
quantas casas ali tinham
E quantas
famílias, quantas pessoas
Perspectivas,
e situações
O pra quê de tanta investigação
Só fui
entender nas prosas que ali travei
Que nada
tinha mais valor
Que o calor
de cada vida
Um borná,
caderno, caneta e celular
A água na
garrafa de usar nem lembrei
Procuro por
alguém já conhecido
Não lembro o
nome e então proseando eu sigo
"Pra
que tu tá aqui?"
Digo que é
um levantamento
E já embalo
no proseamento
Querendo
saber o que mais se precisa
Além de tudo
de que se necessita
"Água e
luz meu sinhô"
Responde o
primeiro José
Cearense
arretado
Sem pregas
na língua
Personalidade
honrada
Tem palavra
certa
E uma fé em
Deus
Que a todos
abençoa
Minha
pesquisa vai ficando de lado
Em cada
história
Que o
valente combatente
Vai trazendo
da memória
"Ah,
meu sinhô, aqui a polícia visitava direto
Roubavam nos
cafundó
E os home
parava aqui só
Eu, já me
enfezado,
Um dia
esbravejei e bem alto falei
Aqui mora
homem digno e honrado
Tanto ladrão
engravatado
E os ceis
vem aqui na minha porta?
Depois disso, meu sinhô
Essa folia se acabô
Graças a Deus"
Depois disso, meu sinhô
Essa folia se acabô
Graças a Deus"
E as horas
se passaram mas o tempo eu não vi
Seu José me
dispensou
Quando logo
se alembrou
Que tinha um
barraco a construir
Uma foto, seu José, pra eu guardar dessa visita
De braços abertos e sorridente
Uma foto, seu José, pra eu guardar dessa visita
De braços abertos e sorridente
Braços
fortes e honradez
Em meio a
timidez sorriu contente
Meio sem
rumo fui caminhando
Pra de volta
da direção do meu mundo
Entre a via
marginal e marginalizados
Encontrei a
pessoa que procurava
Três
crianças com febre
Mais ela e
seu marido
Aguardando
as roupas quarando no varal
Pra depois
correr com os meninos pro hospital
"Não
tem muita roupa
Tem que
esperar secar"
Fui tocando
mais adiante
E vi outro
rosto conhecido
De outra
missa que lá teve
Dona
Francisca e seu marido, José
O segundo
José, e três crianças
Que
espreitavam numa piscina vazia
Fui tirando
foto, com a licença devida
De tudo
quanto é coisa que eu via
Na primeira
tentativa seu José se recusou
"Pra
quê tirar foto de um bicho feio feito eu?"
Deu alguns
passos, colocou boné na cabeça
Pensou e se
virou
"Então
tira meu mestre
Se tu quer
tirar, então tira essa foto"
Ficou um
pouco distante de sua esposa
Mas sorriu e
agradeceu
Seu barraco
precisando de telhas
Madeiras,
tudo quanto é coisa de se imaginar
Fui sabendo
de sua vida
Em cada
provérbio que ele contava
E se
esperançava quando se alembrava
"Quem
sofreu foi nosso Senhor Jesus Cristo
Para salvar
dos nossos pecados
Aqui o cabra
tem que se avivê com o que tem
Tenho fé que
logo mais
Noutra vez o
mestre vai ter um lugar pra se assentá
Voltei pra
Juazeiro e não tive ajuda lá
Vim pra cá
porque aqui as pessoas ajudam
Nada me há de faltá
Nada me há de faltá
Tenho filhos
de outro casamento
Que não
querem saber de mim
Tive casas e
tudo perdi
Pra bebida e
a jogatina
Nessa vida
só tive duas mulheres
Aos meus
setenta e seis anos
Não sou um
cabra mulherengo
Lá no trecho
eu era conhecido
Era o José
Fogueteiro
Aqui, minha
mulher não gosta mas eu falo
Sou o José
Fodeteiro
Estou todo
fudido meu mestre
Mas tenho fé
que vou vencer"
Fui logo me
despedindo
Apertando
aquela mão calejada
E percebendo
aquela pele surrada
Aquele olhar
que não se perde jamais
Quatro
telhas era o necessário para seu José
Resguardar a
família
Pois seu
barraco de agora
Quando chove, dentro molha
E nos passos
de retorno pelo lado de baixo
Ao longe
avisto uma mulher
Suas roupas
lavando agachada na marginal
Cadeiras
amarelas e vermelhas ao seu redor
Era pros
motoristas perceberem o sinal
Ali, naquele
espaço tinha gente ocupada
Que desviem
os doutores da estrada
Fui andando
de volta
Com os
provérbios dos meus mais novos teólogos
Fermentando
em minha mente
Não dava pra
continuar igual
Dali em
diante, haveria de ser e fazer diferente
Meu almoço
já em casa
Parecia
descer quadrado
Eu precisava
dar um jeito e lá voltar
Eu precisava
com aquele seu José Fogueteiro
Mais uma vez prosear
E assim,
mais tarde eu voltei
Lá estava
ele deitado sobre um compensado de madeira
Sua cabeça
recostada sobre um tijolo forrado
Com um pano, o seu travesseiro
O barraco
continuava o mesmo
As mesmas
telhas estavam faltando
Não pude
socorrê-lo naquele pedido
Dia de
feriado, tudo fechado
Minha boca
nada prometeu
Mas meu
coração se comprometeu
E se eu não
mais voltar
As prosas se
perderão no ar
Mas minha
alma nunca mais se aquietará
Diante de
tudo isso
"Como
posso me calar?"
"O Sertão é o sozinho,
É dentro da gente
Está em toda parte.
Deus e eu no Sertão."
(Guimarães Rosa - Victor e Léo)