terça-feira, 21 de abril de 2015

Grande Sertão: Brasil - parte III - Versus



Realidade versus ficção
Natureza versus tecnologia
Riqueza versus pobreza
Sabedoria versus insensatez
Franqueza versus hipocrisia
O mundo é um jogo de opostos
O avesso dos avessos
Côncavo e convexo
E no limiar entre céus e terra
Jaz o sertão
Seja lá, acolá ou no coração
Já dizia o grande poeta dos sertões
Guimarães Rosa
"O sertão está em toda parte
É dentro da gente"
E nessa desventura desprovida de almejo
Na sábia insensatez e vontade do benfazejo
Sigo o instinto matuto do agrado imediato
É necessário abrir novas picadas
Seja no asfalto ou no mato
No primeiro contato o olhar inocente
São crianças, sorrisos e esperança
São gente que pouca gente vê
Um casal de irmãos me esperam atentos
Eu, de não sei de onde oriundo
Caminhando rumo ao seu mundo

Mostrei-me amigo e de boa vontade
A confiança então foi verdade
Conheci seus nomes
Logo num chão acinzentado
Pela queima de lixos e objetos
A menina, a mais nova, com sua meia vassoura varria
Um caixote era uma mesa
Uma cadeira com cordas de naylon descartada ali
E um balde que era a suposta lixeira
Identifiquei o cenário e perguntei
Estão brincando de escola?
Toda tímida me respondeu com a cabeça que sim
E então ganhei um santinho
A imagem de uma santa, a mãe de Jesus

Seu irmão sobre a bicicleta ziguezagueava
Davam-se bem
Toda delicada a garotinha, já vaidosa
Tinha marcas de esmaltes em suas unhas dos pés
Apenas algumas
Era rosa
Noutro canto outras três crianças brincando
Numa piscina desusada e descartada
Sem água sob o chão
Posterior, com alguns copos de água e terra

A bola sobre a cerca
Vi como um sonho pendurado
Escondido, deturpado, roubado
Por quem?
Por todos nós que nos calamos
E os mantemos à margem
Marginalmente aquém da margem

Um telefone de tecnologia no meio da terra
Bonecas e cd's abeirando a cerca
Um caminhãozinho parado sob a barraca inacabada
Todo tipo de descarte
Que a santa hipocrisia chama de caridade
Ali se encrusta os recebidos em cores e amores
Pra saciar o ego dos doutores
Dando um paliativo pra tantas dores

Ainda me deparo sob a ponte
Com o nome de Jesus pintado na lateral
Deus no céu que olha
Deus na terra que faz
E alguém pintando o nome de Jesus
Como se olhando estivesse para esses amarginalizados 
Imagino que quem isso fez
Sequer olhou pro lado uma vez
E visitou o Jesus no rosto sofrido de cada assentado

Na prosa poética de um estimado meu doutor
Tamanha simplicidade e humildade
Vou saindo margeando meu caminho novamente
E com uma tamanha inquietança
Mas com vontade de fazer mudança 
Então, compadre meu, senhor José
A festa ainda há de ser do tamanho de seu merecimento
 De tudo que vivi nesse tempo de hoje
Em meio a inocência da infância
"Como posso me calar?"



"O Sertão é o sozinho, 
É dentro da gente
Está em toda parte.
Deus e eu no Sertão."

(Guimarães Rosa)