segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Crítica: "Um crime de mestre"



"(...)

Você se atreve a sair?

Você se atreve a entrar?

Quanto pode perder?

Quanto pode ganhar?

Se você entrar vai pra esquerda ou direita?

Vai até a metade ou nem isso tenta?

Você ficou tão confuso que começa devagar

Pistas longas e com curvas e você tem que acelerar

E andar muitos quilômetros em todo tipo de lugar fútil

Até que chega com temor a um local ainda mais inútil

O lugar de espera...

A gente apenas esperar...

Por um trem que vai partir

Ou um ônibus que vai chegar

Ou o avião decolar

Uma correspondência chegar

Ou a chuva passar

Ou o telefone tocar

Ou a neve tocar o chão

Ou esperar por um sim ou um não

Ou um colar de pérolas

Ou um olhar de relance

Ou uma peruca com cachos

Ou outra chance..."

 

O filme "Um crime de mestre", da Netflix, retrata uma verdadeira batalha psicológica e de evidências entre o acusado de matar sua esposa e um jovem promotor que de início estava cegado pela vaidade, mas depois de aprender com os erros encara seu adversário de forma inteligente. É uma produção digna de análise e não deixa aquém da expectativa. A trama como um todo é instigante. Não há muito o que dizer, apenas assistir e se atentar para os detalhes. 

 

Já o poema transcrito acima faz parte de uma cena emocionante quando o promotor o lê para a mulher do acusado de homicídio, que se encontra num leito de UTI entre a vida e a morte. Em se tratando de poema, não importa o gênero do filme ou da série, pois a arte como um todo tem suas derivações e conexões. Um verdadeiro complemento que eleva a qualidade da história trazendo reflexões à parte sem desfocar do assunto principal.

 

Particularmente, toda arte é uma espécie de poesia, seja falada, cantada, pintada ou interpretada. Vai mais dos olhos e ouvidos de quem enxerga e se atenta do que do conteúdo propriamente exposto. Mais um filme que vale a pena conferir

 .

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Crítica: "Sintonia"



“Sintonia” é uma excelente série brasileira da Netflix que retrata com perfeição o cotidiano das pessoas que habitam a periferia de São Paulo, também conhecida como favela para quem vê apenas por fora e de comunidade para quem enxerga por dentro. 

Os protagonistas são três jovens amigos que cresceram juntos, cada um com seu grande sonho de realização e sucesso. Apesar de caminhos diferentes a amizade é algo forte, sólido e sempre presente. Talvez por isso o título da série: "Sintonia". Existe um respeito mútuo, cuidado, amor e dentro do possível se encontram para prestigiar as conquistas do outro. 

Eles conseguem se realizar naquilo que tanto sonharam, mas nada foi fácil e não continua sendo. Entre acertos, riscos, consequências e muita superação o trio caminha por suas escolhas sem perder o contato e as raízes, algo muito típico do espírito de comunidade que habita nos moradores da periferia. Quem expande para o sucesso não esquece suas origens.  

Um conseguiu evoluir na carreira artística como MC. Outro se reencontrou dentro da religião. O terceiro conseguiu seu tão almejado posto dentro do tráfico. A realidade na periferia é tal como descrito na série, tanto no quesito de comunidade, em que todos se ajudam e se respeitam, como na questão do crime, da ordem imposta para uma boa convivência entre os membros da comunidade e a "lei do crime" que age quando alguém trai a confiança da "irmandade", quando alguém tenta explorar trabalhadores honestos.

As drogas são o carro chefe. Por isso evita-se todo tipo de violência para não chamar atenção da polícia. Há policiais corruptos, bem como bandidos que exercem um papel conciliador e protetor da comunidade. Uma inversão não apenas de valores, mas de papéis. A polícia acaba sendo conivente com o tráfico e ganha por isso. Policiais são comprados. Traidores do tráfico são punidos e silenciados com a morte. Retaliações acontecem quando matam policiais, quando morrem bandidos e quando matam inocentes. 

Há um tripé essencial entranhado não apenas no enredo da trama mas na realidade que assola as grandes comunidades periféricas brasileiras: fama, religião e crime. A fé que salva e aliena, o sucesso que dá e tira, o tráfico que mata mas as vezes é a única forma de sobrevivência. Contextos reais, vidas paralelas intimamente ligadas. A verdade tal como é sua realidade. Caminhos de fama e sucesso, dinheiro e prosperidade, fé e religião, crime e ilusão, vida e morte. 


quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Crítica: "Missa da meia noite"



Transcrevo aqui a parte de um diálogo ocorrido a partir dos quinze minutos finais do 7º episódio da 1ª temporada da série "Missa da meia noite", da Netflix. Mas antes de dar seguimento no mesmo e de continuar minha percepção e crítica à reflexão que se tece pela fala da personagem sobre a morte e consequentemente a vida, a travessia ou o ciclo, me atenho a dar alguns adjetivos em todo o enredo, porém com o devido cuidado para não dar spoilers

O cenário da trama é uma pequena cidade construída numa ilha afastada do continente. A religião predominante é a católica, com alguns personagens muçulmanos e ateus. Existem outros diálogos profundamente interessantes com teor filosófico e reflexivo, tanto quanto questionamentos sobre a fé e a verdade que muitos buscam e outros mais tentam deter para si. 

Há também a parte fantasiosa sobre o mal disfarçado numa figura bíblica em que podemos tanto interpretar biblicamente como de forma analogicamente figurada para a nossa realidade. Tem romance, têm exageros, têm verdades, tem maldade e bondade tal qual vemos no dia a dia e, principalmente, uma grande pitada de fanatismo religioso que se manifesta pela detenção de uma verdade deturpada por quem quer poder para controlar os demais. 

Uma das coisas que chama muito a atenção nesse diálogo, além do teor profundamente reflexivo, é a interpretação do casal. A concentração e a troca de olhares durante a fala, que é feita com perfeição de entonação e sintonia, consegue nos possibilitar a conexão com cada palavra dita, que de certa forma estabelece uma ponte entre o fictício e o real, a nossa realidade. Vale muito a pena conferir.

***** 

- O que acontece?

- O que?

- Quando a gente morre, o que acontece?

- O que que acontece?

- O que acha que acontece quando a gente morre?

- Falando só de mim?

- Falando por você.

- De mim... Só de mim. Esse é o problema. Esse é o grande problema da questão. Esse conceito "eu", isso não existe. Não tá certo. Não é... Não existe. Como eu esqueci isso? Quando eu esqueci isso? O corpo para uma célula de cada vez mas o cérebro continua disparando os neurônios, como mini raios, como fogos ali dentro. Eu pensei que fosse desesperar, sentir medo, mas eu não senti nada disso. Nada. Porque eu tô ocupada demais. Ocupada demais no momento, lembrando. Claro, eu lembro que cada átomo do meu corpo foi forjado numa estrela. Essa matéria, esse corpo é praticamente só espaço vazio no fim das contas e matéria sólida? É só energia vibrando lentamente. E não existe eu. Nunca existiu. Os elétrons do meu corpo interagem e dançam com os elétrons do chão embaixo de mim e do ar que eu não respiro mais. E eu lembro, não existe sentido onde tudo aquilo acaba e eu começo. Eu lembro que eu sou energia. Não memória. Não "eu". O meu nome, a minha personalidade as minhas escolhas, tudo vem depois de mim. E eu era antes deles e eu vou ser depois. E todo o resto são imagens que eu juntei no caminho. Breves sonhos passageiros impressos no tecido do meu cérebro morrendo. E eu sou raio saltando ali, eu sou a energia disparando os neurônios e... Eu tô voltando... Só de lembrar, eu tô voltando pra casa. É como uma gota d'água caindo de volta no oceano. De onde ela sempre fez parte. Todas as coisas fazem parte. Todos nós somos partes, você, eu, a minha filhinha, minha mãe e meu pai. Todos que já existiram, toda planta, animal, todo átomo, toda estrela, toda galáxia, tudo. Tem mais galáxias no universo que grãos de areia na praia e é disso que nós estamos falando quando falamos Deus. O Deus. O cosmos e seus infinitos sonhos. Nós somos o cosmos sonhando consigo mesmo. É só um sonho que eu penso que é a minha vida, toda vez. Mas eu vou esquecer isso. Eu sempre esqueço. Eu sempre esqueço os meus sonhos. Mas agora nesse milésimo de segundo, no momento que eu lembro, no instante que eu lembro, eu compreendo tudo de uma vez. Não existe tempo. Não existe morte. A vida é um sonho, é um desejo, que fazemos de novo, de novo, de novo, de novo e de novo. E é assim por toda eternidade. Eu sou tudo isso. Eu sou tudo. Eu sou todos. Eu sou o que sou. 

***** 

Esse diálogo penetrou em meus pensamentos de forma poética, livre de preceitos religiosos e outros mais. Por isso se tornou belo, distinto, mágico, independente, uma verdadeira arte final à parte diante de um contexto que teve seus altos e baixos, ficções verdadeiras e pseudo-realidades. Me levou a um nível de reflexão além do fictício e do imaginário. Talvez pelo momento pandêmico que vivemos em comum, que nos traz consequências várias e tudo isso juntado aos problemas particulares de cada um. Outro ângulo para pensar é que que nem tudo o que parece é. As coisas são vendidas de forma bonita, com um marketing pesado por trás. Assim também são as pessoas que se vendem, ou melhor, se apresentam pela aparência. Elas demonstram ser aquilo que têm, que possuem. Estamos carentes de essência... de coisas reais... de pessoas de verdade...