sexta-feira, 22 de março de 2024

O homem da praça



Ele caminha. Perambula numa solidão que mais parece estar fugindo de algo ou de alguém. Talvez, de um passado que o assombra no presente. Talvez, por isso um chapéu ou um boné puxado abaixo da linha dos olhos que não permite que ninguém o encare. Um olhar desconfiado, muitas vezes intimidador. Cara fechada, literalmente amarrada. Uma mochila nas costas, botas brancas de borracha nos pés, camiseta e bermuda surradas. Cabelo e barbas compridos, por fazer, mas cuidados. Aparentemente apenas um suor incrustrado na pele e na medida do seu possível, uma demonstração de auto cuidado ao lavar-se numa torneira da praça ou do posto de combustível mais próximo. Seu espaço, sua morada, é a praça. Mesmo ali, diante de outros que dividem o mesmo espaço-tempo percebe-se que não há proximidade com ninguém, nem mesmo um cão o segue. Um sujeito isolado em seu mundo. Nada se sabe. Curioso a falta de interatividade com outros ao seu redor. Ninguém se aproxima. Algumas vezes puxava um carrinho de recicláveis pelas ruas. Noutras carregava seus materiais em sacos pretos. Não foram poucos os dias que o presenciei correndo pelo gramado da praça. Novamente, só e solitário, demonstra não se importar com nada ou ninguém à sua volta, exceto sua continuidade entediante e necessária pela sobrevivência. Age feito um ex-combatente que deixou a guerra mas a guerra não o deixou. As marcas de sua corrida fixaram-se na grama formando um caminho circular, um loop eterno no horizonte da terra que se considera sua. Ali, preso em seu mundo é livre de tudo e todos. Liberto, talvez. Liberto em sua liberdade mas, por hora, quem sabe, preso em seus pensamentos, em suas batalhas já vividas. Um sobrevivente das guerras da vida e do mundo. Um foragido? Resiliente do tempo? Um prisioneiro a céu aberto, no campo de concentração de seus pensamentos. Os mesmos pensamentos que o permitem sobreviver ao caos das ruas, das praças. Se porte físico é consideravelmente forte e grande. Ele sabe como sobreviver bem, pois não aparenta desnutrição. E este é um sinal de que apesar da vida que leva, da forma como a leva, sua mente o mantém seguro, alerta. E toda vez que o vejo lembro-me de Viktor Frankl, pai da logoterapia, que em sua obra, "Em busca de sentido", descreveu como sobreviveu aos campos de concentração nazista. Manteve, de certa forma, sua mente blindada e sã. Quantas pessoas conhecemos que são capazes de viver sem deixar que o externo abale suas estruturas internas? Há algo a se aprender com elas. Por hora, sigo no imaginário, em cada vez que vejo o "homem da praça" em sua rotina, tentando perceber o que o torna são e forte numa sociedade egocêntrica que visa status, poder e fama. Há muito mais a aprender com o que não é dito do que com pronunciamentos carregados de alegorias e encrustados de hipocrisia. 

quinta-feira, 21 de março de 2024

Das lutas nas tempestades às tempestades sem lutas



13/04/2016 e 08/01/2023 foi um tempo atípico em muitas concepções. Momentos grotescos na história da democracia brasileira. Ideologias em alta. A ebulição do ódio já fumegava pelas têmporas e vísceras de demônios despertados pela cobiça do poder pelo poder. Um golpe político partidário desestabilizou a ordem. Motivos forjados que levaram o parlamento a sentenciar uma pessoa inocente, não chegaram nem perto de crimes cometidos por um desgoverno nefasto, promíscuo, criminoso, prostituído de ideologias corrompidas em prol de mero enriquecimento ilícito e uma necessidade quase sexual de se ostentar no trono do poder. Talvez, nada disso tivesse acontecido se, quando um boçal exaltou um torturador, tivesse saído algemado e preso do parlamento. Faltou a ordem para impedir o desprogresso que se viria nos anos seguintes. Com um golpe teatral, uma cena grotesca que não derramou uma gota de sangue diante de uma "fakeada", que posteriormente se tornaria evidente a armação para a realização de uma cirurgia, ele fez fortalecer sua campanha. E conseguiu chegar lá. Nesse entremeio uma pandemia assolou o mundo. O sangue que não saiu de seu corpo escorreu por suas mãos e nas de seus asseclas quando sua estupidez maléfica não apenas permitiu mas colaborou com a morte de milhões de inocentes. Disso tudo ficou a lição de que não é a igreja o caminho para um bem maior, tampouco para o céu. Não é o pastor, o padre ou qualquer líder religioso que te dará a luz necessária para o caminho da salvação. É necessário filtrar e podar toda e qualquer ideologia política estruturada em esquemas religiosos de negócios. Já diziam alguns visionários do passado que era necessário todo o cuidado com algumas seitas que brotavam no mercado milionário da fé, pois uma vez adestrando e alienando seu público nas estruturas da igreja, seria necessário se infiltrar e dominar o mundo da política. As tempestades que caíram sem luta propiciou uma devastação sem tamanho. As lutas que se seguiram pelas tempestades tombaram muitos guerreiros e guerreiras. De tudo fica a lição de que não se pode vacilar, nem se calar, tampouco se acomodar. Omissão nunca pode ser uma opção. (27/09/23)

Ainda me lembro bem


Ainda me lembro bem das brincadeiras no quintal de terra na casa dos meus avós, Joaquim e Iolanda. Não tinha hora para acabar. Histórias inventadas, sonhadas, entre carrinhos, soldados e índios...

Ainda me lembro bem do medo de ficar na escola, de não ter ninguém a me esperar do lado de fora, das lutinhas com meu pai, das tarefas ao lado da minha mãe, do tempo que não volta mais...

Ainda me lembro bem dos almoços de domingo na casa da vó Cida. Vô Dito organizando o quintal, tratando das galinhas ou sentado na varanda olhando o movimento da rua.

Ainda me lembro bem ...

Em muitas datas especiais eu me dividia entre a tristeza pela ausência de pessoas queridas que já partiram ou de pessoas distantes separadas pela geografia, e a alegria pela presença viva dos que ali celebravam comigo. É uma batalha tão intensa quanto estranha, viver o presente sem se abater pela saudade...

Natais, Páscoas, aniversários, sempre há uma mistura de emoções e sentimentos que nos transbordam. São datas em que ajuntamo-nos com os nossos. Família, amigos, 

Sempre tem uma data chegando, uma saudade batendo, uma lágrima escorrendo, e uma esperança nascendo.

(12/01/21)

quinta-feira, 14 de março de 2024

Devaneios solo


O mundo me cansa
Estou cansado
Fadado a acumular dores alheias
E poeiras de outras tempestades
Meus desertos, minhas cartas, minhas travessias
Vivem um dessentido imediato
Meus ventos refrescam a face
E a dor que nas costas se acumula
De fardos que teimei não descarregar
E sobrepesam meu caminhar
Que já vagueia entre nuvens de razão
Mordaças de emoção
Entre esperanças sem sentido e miragens do coração
Lá fora o barulho dos motores
Como o estrondo da explosão de outras guerras
Me invocam para as inquietações
Vivo meu calabouço de silêncio
Sentenciando-me à solidão do tédio
Ou, da espera, que me aflige
Esperas, talvez, sem porquês
A corrida agora é de um tempo
Que se perdura no limiar da passagem
Dia e noite, noite e dia
Sombras e ventanias
Que perseguem, ora varrem
As miragens, os sonhos, as dores, os amores
E ficam marcas do que nem vi acontecer
Porque, talvez, deixei de viver...
Mas, quando olho para elas,
Tenho ciência de que estive em algumas lutas,
Batalhas, becos, estradas
Perigosas, tortuosas, ardilosas,
Trincheiras e abismos
Montanhas e desertos
Ferido ou matado
Entre luas e pensamentos
Sonhos e tormentos
Apostando contra o tempo
De que em algum momento
A dor será vencida
A vida será vivida
E o amor será amado