segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Tantos


Tantas histórias já vivi
Tantas vidas eu passei
Tantas vezes já morri
Por tão pouco eu chorei

Tantas dores cultivei
De tantos fins eu renasci
Em tantas lutas eu sangrei
De tantas quedas me reergui

Tantos mundos percorri
Em tantos sonhos viajei
Tanta gente que já vi
Tantos olhos eu fitei

Tantos caminhos eu andei
Tantas vezes já caí
Tantos braços me entreguei
Tantos amores eu senti

A fortaleza que eu perdi
No horizonte que eu sonhei
Vazio e medo que senti
Quando sozinho me encontrei

A solidão que eu carreguei
Nos mundos que corri
Fruto do medo que plantei
Ou das ausências que eu não quis

Tanto tempo
Tanto silêncio
Entre tantos momentos
Entretanto Uma vida (...)

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Concertos de Mestres - Parte II



"Bença, vô!". "Bençôe", respondia de forma simples o meu saudoso Vô Dito. "O que o senhor tá fazendo?"  Ele mexia na torneira sobre a pia da cozinha com algumas ferramentas. Tirou-a e colocou um pano para que a água não inundasse a cozinha. Em seguida foi retirando o pano e encaixando um tampão. Rosqueou-o com firmeza para que a pressão da água não arremessasse para longe tampão e pano. "Pronto! Precisava di trocá a borrachinha da tornera. Ela tava passando. Tava pingano água. E num pódi disperdiçá água. E despois a conta vem cara no final do mêis."

Vô Dito não tinha muita leitura. Se virava como podia para ler e escrever palavras. Tropeçava nas letras para completar a frase. Foi comerciante e sempre tinha suas contas sobre controle, bem como uma boa economia guardada para ocasiões especiais. Talvez, fosse um costume antigo, ele sempre carregara consigo uma certa quantia de dinheiro no bolso. Perigoso para os dias atuais. 

Sem formação acadêmica foi um bom administrador de seus bens, conquistados com muito suor. Não fez nenhum cursinho básico de eletricista, pedreiro, encanador, carpinteiro mas sempre fez de tudo um pouquinho. Só em casos que superavam seu entendimento aí recorria a profissionais, do contrário, não tinha preguiça e botava a mão na massa. 

Noutra vez, chego em sua casa e o encontro com uma marreta numa mão e uma talhadeira na outra. Estava batendo na parede por sobre umas trincas que se formaram na parte superior da porta. Perguntei-lhe o que fazia. Ele parou suas marretadas e mostrando as trincas disse que era necessário fazer uma amarração com pedaços de aço para que elas não se tornassem maiores. Era preciso abri-las de forma que coubessem os metais, todos já cortados. Uma engenharia da sabedoria bruta. 

E quantas e quantas vezes o vi no quintal fazendo massa de cimento para tapar alguns buraquinhos na parede ou algum concreto mais pesado? Não foram poucas. Ele nunca me ensinou como se fazia as coisas mas eu vi. Cada cena ficou bem guardada e por consequência hoje também me viro nos trinta. A engenharia do improviso é algo em que gosto de utilizar o meu tempo. Reinventando.

Desde que ele passou a utilizar medicamentos para o controle da pressão arterial e outras coisas mais, eu já trabalhava em farmácia. Todas as vezes que retirava seus remédios no Posto de Saúde Municipal pedia para que eu separasse cada qual no seu lugar, sempre mantendo a ordem por vencimento. Fazia questão de comentar sobre outras enfermidades como o ácido úrico e o diabetes que vez ou outra alteravam. Contava-me dos remédios e seus efeitos. 

Lembro-me de uma noite que eu meu primo Kleber chegamos de última hora em sua casa para passar a noite. A Vó Cida, sua esposa, estava internada. Jogamos dois colchões de solteiro no chão da sala e nos arrumamos pra deitar. De repente, escutamos um grito seguido de um choro descontrolado. Vô Dito imaginou que o motivo de estarmos ali era porque a Vó estaria muito mal no hospital e por outro lado ninguém lhe contara a verdade. Custamos a fazê-lo entender que realmente só queríamos fazer-lhe companhia e que logo mais a vó Cida voltaria pra casa.

Enfim, estes são mais alguns consertos que aprendi sem ter frequentado escola alguma. O mestre passava a lição botando a mão na massa, desprovido de qualquer intenção de ensinar. A arte de ensinar simplesmente acontecia pelo exemplo. Eis o conserto que virou concerto para a vida. A você meu Vô Dito, obrigado por seu exemplo e por suas lições aprendidas e repassadas na faculdade da vida.

Benedito José de Oliveira - in memórian
* 30/12/1935
+21/10/2008







quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Concertos de Mestres - Parte I


1994, aproximadamente. Eu tentava insistentemente atravessar uma corda de náilon de uma ponta a outra pela parte superior da rede de vôlei. O canal era estreito e a corda enroscava. Sem isso não poderíamos amarrar a rede aos mastros. Desisti. 

No quintal da casa do meu avô Joaquim, irritado por não conseguir o feito, eu já me preparava para levar corda e rede ainda separadas para o local onde jogaríamos uma partida de vôlei. Ele, meu avô, observando minha chateação aproximou-se e perguntou o que eu queria fazer. Expliquei-lhe mas sem esperar que pudesse dar-me alguma solução.

Meu avô era um homem do tipo bruto e carinhoso, estopim curto, de poucas palavras mas de um amor sem precedente pelos netos. Eu, sendo o primogênito, tive a honra e o privilégio de sentir e viver esse amor incondicional, base forte de minha criação e educação. Meu berço é este. Sou praticamente um filho de avôs e avós. Com muito orgulho por sinal.

Seu Joaquim, como era chamado pelos vizinhos e amigos, não sabia ler nem escrever. Saíra de casa aos quatorze anos de idade. Casou-se com minha avó Iolanda e teve três filhos: Carlos, o mais velho; Claudete, minha mãe; e Clóvis, o caçula. Ele tinha um caderninho onde treinava sua assinatura. Gostava de passar um tempo debruçado sobre o caderno na mesa repetindo aqueles garranchos. Lembro-me que quando aprendi a ler e escrever por vezes tentei ensinar-lhe algumas letras e palavras. Não obtive sucesso algum exceto a atenção dos seus olhos amorosos, que, mesmo ciente de que não daria conta de aprender nada, ainda assim, mantinha-se firme com total atenção e dedicação paternal de vô.

Bom, vô Joaquim, andou pelo quintal e voltou com um galho de árvore de uns trinta centímetros. Analisou-o atentamente e com uma faca afinou uma das pontas. Tratou também de tirar algumas imperfeições. Em seguida amarrou a corda na outra extremidade da madeira. Sua ideia foi simplesmente genial. Ele criou ali uma agulha improvisada, ou melhor, um guia para fazer a corda atravessar pelo canal superior da rede de vôlei. Deu certo. 

É com saudade e orgulho que me recordo de momentos assim. Eu estava lá, presenciando, vivenciando, aprendendo a consertar pequenas coisas com improviso. Ele foi um verdadeiro mestre que fazia de seus consertos um verdadeiro concerto para a vida. Sem estudo, mas repleto de uma nobre sabedoria que até hoje me norteia na caminhada, seus feitos simplesmente são uma obra de arte que perduram na eternidade da lembrança, no melhor canto do meu coração. Sou grato a você meu avô, apenas por ser e estar sempre presente em minha vida. 

Joaquim Rosa da Silva - in memorian.
* 17/05/1.933
+ 14/10/1.995





terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Carta sem destino


Há dias que sinto mais do que vontade de correr para seus abraços. Na verdade sinto uma necessidade incomensurável. Então, corro para mais longe. Mergulho mais profundo. Entro no trem de direção oposta. Assim, sobrevivo. A dor é esquecida até que nos cruzemos em outro caminho, noutras águas, em outra estação. A saudade que um dia passou semeou distância, solidão e cultivou perguntas sem respostas. As raízes dessa relação enrijeceram e penaram para extrair sustâncias de uma terra seca para a sobrevivência. Todos os caminhos levam a um só horizonte. Todas as águas desembocam no mesmo mar. Todas as estações se findam num só destino. Eu corro desse passado. E sempre tropeço sobre ele. Quando resolvo encará-lo e enfrentá-lo numa batalha épica, meu algoz se emudece, desaparece e até se esquiva escondendo de seu próprio sangue. É uma guerra cíclica de amor e dor, ódio ou rancor, sangue e suor, eternas lágrimas e risos esquecidos. Já não somos nada. O fio que nos liga é incapaz de nos unir. A história que nos divide é longa. Entendo que rejeição é a palavra que define as ausências, a distância e tudo o mais que deixou de acontecer nessa estação. Não sei que tipo de lembranças conseguiremos guardar ou suportar. Eu faço questão de engavetar cada vez menos. E, o que fica de fora, dispenso sem ressentimento para bem longe de minhas vistas. Sobreviver assim é se equilibrar em meio ao caos. É enfrentar o temporal totalmente desnudado. Tento guardar algo de bom, mas não há. Sobram objetos de dispensa. Não há histórias para recontar. Não há pescarias. Não há futebol na TV. Não há jogos de cartas. Não há piadas. Não há músicas cantadas. Não há um beijo. Não há um abraço. Não houve nada disso e tenho ciência de que nada mais haverá. Sigo me redescobrindo, morrendo e renascendo, errando e aprendendo em cada manhã. Não sei o que posso ser, mas sei o que não quero: jamais quero ser aquilo que você não foi; pois, o que você foi também não sei. De toda a pintura ou retrato que poderia ter, só vejo as suas costas cada vez mais distante. E assim, neste capítulo, apenas me desapego um pouco mais...