sexta-feira, 27 de maio de 2016

As viúvas de Lótina


O apocalipse fora instaurado
O bom vilão, então, sacramentado
Hospedeiro de tantas vidas
Requisitado para o berço das almas
Entre a vida e a morte
Viveu seu adeus
Deixando na memória apenas a brisa
Estonteante antídoto do amor
Na cidade das sombras
Brilhou o seu olhar
Foi brasa, foi fogo
E jamais fora cinzas
Nas tempestades emergidas dos confins
Fora escudo, absurdo e ousado
Sob ataques foi ferido
Jamais, assim, vencido
De suas conscientes dores
Brotou-lhe a paz desejada
Quando sua páscoa lhe fora contemplada
E entre os perfumes de suas flores
Fora enterrado pelas viúvas
Da terra longínqua de Lótina...
Aqui jaz um eterno guerreiro.

A gaivota do ocaso

Sobe a ladeira de pedra sem saltos
Em descompassos certeiros que riscam o asfalto
Inebriante barulho dos motores não te ofuscam
Esconde-se o sol para a lua te acompanhar
É o ocaso, a sintonia perfeita
Ruas sem flores que aguardam tua passagem
Devassas pela brisa arando o próprio tempo
Deslumbrante silhueta, portentosa caminhante
Segues inerte à primeira vista
Plainando no ar, sob o mar deste céu
Escondes teu brilho sob a sensata ousadia
No rastro que deixas voando
Inquieto bater de asas
Que tua destreza irradia 
Sob o céu daquela rua
Doce gaivota do ocaso
Tuas asas incendiaram minhas vistas
Tua brisa acalmou o meu pensar...

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Bataclã planalto: a democracia violentada


Que a arte do bem comum deixou de sê-la a muito tempo, disso não temos dúvidas. Na verdade a política é algo primorável apenas nos livros, principalmente nos de filosofia. Na prática creio que nunca tenha atingido o ápice e o objetivo ao qual fora criado. Talvez deva entrar para a galeria dos contos. Bom, mas isso pode denegrir os bons contos da literatura e influenciar negativamente as futuras gerações. Deixa quieto.

Pior do que os políticos prostituidamente corrompidos pelas cifras do poder são os seres que marionetemente repetem as falácias oriundas das quengas do congresso como típicos papagaios de pirata. Peço desculpa aos papagaios.

Ninguém nunca estudou história? Ninguém nunca leu pelo menos para que a política de verdade serve? P*#@@!!! E agora que a merda está posta queria ver os "verdes louros desta flâmula" dizer alguma coisa que não seja desculpa esfarrapada.

Mazelas! É preciso que elas persistam. A antipolítica trabalha contra qualquer sistema de governo. A atual está escrachadamente puta e faz um trabalho ímpar para manter o caos em nível alto. 

Sinto que o bataclã tem recrutas, associados e voluntários em todos os escalões sociais. Um verdadeiro exército de pouca-prática mantidos sob uma overdose alienante e manipulável de falsas informações. 

Violentaram a democracia no instante que instauraram uma crise forjada. O que existia porém era um governo sem "braço forte" para orquestrar a bagaça. Os donos desta zona, neste instante, com certeza não estão trabalhando para sanar essa "tal crise", nem tampouco preocupados com a situação da população em geral...

E assim caminhamos todos... Entre pensadores, quengas, papagaios e nada de política.

Cartas em Tempos (XV) - A terceira via


A terceira visão.
 Faz-se necessário quebrar alguns protocolos de meus devaneios escritos. Explicar (-se). Ou, na verdade mostrar um algo que não atingiu ainda o pensamento de quem leu. Não é uma crítica a quem teve outras visões. Aliás, isso é ímpar e contributivo para quem teceu as ideias e escreveu. Entendamos assim que essa terceira via é de fato alguns relatos do pensamento do autor. Manter o mistério do sentido original de cada escrita é, talvez, a única regra deste espaço. As experiências que retornam de cada um (a) que se atreveu a participar das linhas e entrelinhas é magnífico.

Nesse caso, em específico, faço questão de direcionar algumas razões e emoções que penderam durante a escrita das Cartas em Tempos. Direcionar não é decifrar os pormenores. Entendamos bem isso, pois, se a cada texto ou livro que é publicado diariamente pelo mundo vier um manual ou roteiro com as devidas explicações e motivos que levaram o autor a produzi-lo, a obra em si não teria a menor graça. Bastava ler o resumo (o manual).

A primeira via de fato são as questões abordadas em cada carta. Elas partem da ordem social, política, econômica, financeira, religiosa e se desembocam num cenário de guerra. Esta porém nem sempre acontece com as armas em punho. Não deixam, também, de serem grandes batalhas contemporâneas. Cada personagem tem um pouquinho do outro. As questões se entrelaçam.

O que de mais profundo posso deixar é que tudo foi devidamente pensado num sonho. Imaginar um sonho e pensá-lo. É um ato de introspectar-se e ao mesmo tempo sair de si. O ambiente "sonho" permite o enlace das trocas de cartas. Por isso, estão todos cientes dos outros cenários, praticamente em tempo real. Todos os personagens as leem. 

Ao mesmo tempo pode-se também imaginar que é um único herói e algoz, ao mesmo tempo, protagonizando todas as histórias ali vividas. Um único personagem capaz de estar em todas batalhas. Atenção para o herói que é também algoz, de si mesmo! O inimigo declarado é outro, é externo e como já citado acima, pode ser social, político, religioso, financeiro e econômico.

A maior luta acontece no consciente deste protagonista que a cada carta envereda-se de uma nova guerra. A crença de um personagem é a descrença do outro. A esperança, a utopia que brota de um lado, desaparece de outro. O sonho que é retomado pelo retorno à vida é morto por aquele que não quer mudança. Altos e baixos de um único ser, que na vida diária, persiste e desiste, ganha e perde, vive e morre.

Dizer que não há nada de si, do autor, nas cartas que precederam A terceira via seria uma inverdade. Há mais do que pensamentos. Há sentimentos declarados. Viver é uma aventura mas é também uma guerra constante. Falar de sentimentos enquanto o mundo se despenca em valores materiais é uma insanidade. Mas, me disseram, porém, que aos poetas tudo é permitido. Poetas vivem em mundos paralelos, em outras vidas. São manhosos, sensíveis, inquietos, românticos e brigões. Será?


Enfim, encerrando esse diálogo com os leitores que se entrelaçaram com as cartas, digo que A segunda via são os olhos de cada um de vocês. O retorno nem sempre me veio através do espaço que o blog permite responder. Muitos fizeram questão de formalizar via email, nas redes sociais e até nas rodas de conversa. O olhar apurado de quem lê traz uma visão, um cenário, por vezes inimaginado pelo devaneio do autor. A todos, muito obrigado! Terno abraço...

terça-feira, 24 de maio de 2016

Cartas em Tempos (XIV) - Capítulo Final


O velho do subúrbio não resistiu a cirurgia. De sua vida solitária restaram seus pensamentos anotados por sua "vxlha máquina dx xscrxvxr".

Os índios resistiram, apesar de grandes perdas. As mídias independentes conseguiram transmitir a barbárie cometida pelos fazendeiros, uma tentativa de expulsar os índios de suas terras. Nenhum poderoso foi preso. Porém, o governo teve de se manifestar e agir. 

O homem da rua continua em seu lugar, em sua rotina entre o perambular pela praça e amoitar-se do lado de fora do cemitério. Sua invisibilidade lhe permite não pagar impostos nem ter de dar explicações a terceiros. Uma vida onde ele mesmo é o fantasma.

No sertão, o homem de pele queimada pelo calor infernal do cangaço permanece em sua lida. Uma labuta constante para driblar a seca da natureza e a secura do coração dos políticos que não querem mudar aquele cenário. Apesar da descrença no homem faz suas rezas para os santos daquele chão.

O soldado retornou para sua terra. Nada mais estava como antes. Encontrou seu amor, teve filhos e leva uma vida fora da cidade grande, numa casinha branca na beira de um rio. Seus fantasmas ora o perturbam ora desaparecem. 

As cartas se corresponderam e as histórias se entrelaçaram. Ninguém se conhecia e ao mesmo tempo estiveram unidos pela esperança, pelas batalhas e pela grande luta da vida: sobreviver frente aos desafios

Cada personagem carrega um pouco do outro. Estão interligados. São pessoas desconhecidas que se cruzam através desta sessão de cartas. O que têm em comum é a guerra. Questionamentos, fé, esperança, utopia ou a falta de tudo isso que se resume em enigmas da vida. Razões e emoções.

É uma guerra muito mais psicológica do que real. As cartas partem sem destino e encontram outros semelhantes, caminhantes em aflição. Cada um é uma parte do consciente do outro... Talvez, sejam um só... Um protagonista de várias fases e vidas. Talvez seja eu... ou você.

Meus heróis deste sonho encerram-se com o despertar das horas. É hora de guardá-los, sacrificá-los talvez. Todos em um findam-se para a vida continuar... Em meio a tantas guerras, de tantos confins, sigo a vida, a rotina, aprumando pelos caminhos que se entrelaçam. Em cada estação, um pouco eu deixo, outra tanto eu carrego... 

Sou da mata, sou da rua, sou do sertão, sou da favela, sou da guerra...

Cartas em Tempos (XIII) - Das matas


"Acordamos antes do costume com o barulho dos tiros que partem de todos os lados.
Como num ritual de guerra última, os homens pegam arcos, flechas, lanças, facas e todas as armas possíveis e se dirigem para o limite entre a mata e a cerca que os capangas do fazendeiro colocaram.
Mulheres, crianças e os mais velhos se dirigem mata adentro.
Temos um lugar ainda desconhecido pelos brancos.
Nosso chão sagrado nos protege porque nós também lutamos para protegê-lo.
Hoje tem mais gente do que outros dias, lá do outro lado da cerca.
Já pedimos ajuda para outras tribos.
Se faz necessário...
Aqui, somos todos irmãos.
As tribos se unem para proteger uns aos outros.
É o destino de cada um aqui.
Ficamos escondidos, na espreita.
Nossas armas são limitadas frente ao poder de fogo dos capitães do mato.
Estão alvoraçados.
Nada está normal.
Eles avançam rápido.
Estão nos dizimando...
Somos obrigados a recuar...
Atearam fogo e as chamas adentram a mata.
E assim eles tomam um pouco mais de nossas terras.
Os latifúndios políticos logo mandam suas máquinas para devastar ainda mais...
Não somos nada para este país...
Desde sempre tomaram nossas terras...
Somos o encalço aos olhos deles...
Mas enquanto houver um de nós que ainda respira, haverá luta.
Vigiamos dia e noite.
Nosso povo só quer viver...
Viver em paz na terra que é nossa.
Caros companheiros de tantas guerras.
Essa noite decidimos sacrificar tudo nesta batalha que agora acontece.
Os mais velhos, junto com as mulheres e crianças já partiram.
Estamos ornados para a guerra.
Preparamos nosso espírito para tombar o inimigo ou entregá-lo à nossa mãe terra.
Outras tribos já se ajuntaram a nós.
Portanto, essa batalha terá sangue, mas não será só o nosso...
Daqui me despeço, com a tristeza pelos que vão sucumbir ao poder de fogo inimigo...
Mas com muita esperança de que essa luta não será em vão...
Já perdemos muitos irmãos que preferiram se enforcar a ter que passar pela humilhação de sair de suas terras...
Lutaremos por cada um destes...
Não findaremos nossa existência, pois nossos filhos continuarão esse legado...
Nossas mulheres e os mais velhos cuidarão deles...
Adeus meus amigos pela dor...
Eles avançam...
E nós também..."

Cartas em Tempos (XII) - Da guerra


"A guerra sempre foi necessária para a economia. 
A própria igreja já tirou proveito disso. 
Está na história. 
Porém a maior guerra sempre aconteceu no interior, no coração. 
O ego de cada um foi o algoz. 
A ganância desmedida foi a catapulta, a bala não perdida e com direção certa.
Hoje, foi preciso recuar nossa tropa.
Perdemos muitos homens nesta batalha.
Ouvi comentários de que um cessar fogo estava mantido.
Mero engano.
Talvez esse cessar fogo foi mais uma jogada para os holofotes mundiais.
Aqui o chumbo continua sem trégua.
E nessas cartas que escrevi e também li encontrei mais do que palavras, encontrei vida.
Acredito assim que nem tudo está perdido.
Já consigo sonhar com meu retorno.
Sei que muitos fantasmas de guerra irão me perseguir.
Mas muitas experiências de amizade também.
Quanto mais a morte me ronda mais que quero sair daqui.
Confesso, quando cheguei neste lugar não tinha nenhuma perspectiva de sobreviver.
Uma porque aqui estou sujeito a morrer a qualquer momento, outra porque havia perdido toda e qualquer esperança.
Minha vida tinha perdido o sentido.
Quanto a você, meu velho guerreiro do subúrbio, obrigado pelas palavras de vida e sabedoria.
Teu legado continuará em cada um de nós, em nossos corações...
Vai em paz, velho sábio.
Tua vida não foi em vão!"

Cartas em Tempos (XI) - Do subúrbio



"O txmpo vxm, chxga x passa para todos.
Nalgumas vxzxs passamos por xlx.
Noutras xlx passa por nós fxito vxnto, vxndaval, txmpxstadx...
X não nos dxixa nada sobrx nada.
Vivxr não xstá fácil.
Aqui pra nós sobrxvivxr ainda x pior.
A vida na favxla não x só dx mazxlas.
Txm histórias qux nxnhuma TV ousa mostrar.
Txm gxntx do bxm, gxntx dxscxntx, gxntx honrada.
O contrário tambxm, o próprio diabo xncarnado xm pxssoas dxssas quxbradas.
Txm gxntx qux já matou a própria alma pra ficar na boa.
Outros xntrxgaram a vida para o crimx.
Outros, ainda, mataram o pai, a mãx...
Vida louca nxstx lugar.
Dxus mxsmo não vxm.
O qux xxistx são coraçõxs sofridos mas carregados dx pixdadx.
Sx a vida x curta, a minha já xstá no desfecho da trama.
Aos mxus 60 anos posso dizxr que vivi dx um tudo.
Conquistxi o qux quis.
Aqui nxstas duas cxlas, o mxu corpo e a minha casa, aguardo a minha carona dxrradxira.
Parto para um lugar sxm volta, xu sxi.
Nos últimos anos tivx uma companhia insxparávxl alxm dos mxus livros.
Um câncxr diagnosticado como raro.
Xntrx xssas parxdxs somxntx xu, xlx x xsta minha vxlha máquina dx xcrxvxr...
Sigo para o mxu último passxio sxm dxixar lxgado algum alxm do qux xscrxvi...
Posso dizxr que vivi o suficixntx para conhxcxr a fxlicidadx, o amor x a própria vida.
Porxm, sxmprx xstivx só, ora por opção, ora por sxr a única opção mxsmo...
Dxpois dx tantas sxssõxs dx quimiotxrapia o mxdico mx dissx qux a única possibilidadx, rxmota, sxria uma cirurgia arriscada...
Vivxr x um risco.
Xnfrxnto agora o último dxlxs.
Xstou xm paz.
Já mx dxspxço aqui.
Foi bom partilhar minhas batalhas com vocxs guxrrxiros.
Parto conscixntx qux valxu a pxna cada palavra dx cada carta qux li x xscrxvi.
Dxixo aqui o mxu adxus...
X chxgada minha hora, a ambulância qux mx conduzirá já apitou sua cirxnx.
Rxsistam firmxs pois xssx x o nosso dxstino: sobrxvivxr para o dxlírio dos inimigos!
Atx dxpois dxssa vida..."

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Cartas em tempos (X) - Das matas


"Acuaram nosso povo.
Tempos difíceis.
Sequestraram e torturaram muita gente.
Querem que a gente desapareça de vez.
Empacamos o progresso das grandes plantações.
Defendemos a floresta.
Mas somos tratados feito coisa ruim.
Sobra coragem e nos falta força.
Ouvidos que nos ouçam e bocas que nos possam dar voz.
Mas enquanto existir um de nós aqui, lutaremos até o fim.
Despejam veneno com os aviões.
Matam os rios.
Não há interesse de nenhum governo pra nos defender.
Discurso de um lado e prática de outro...
Contamos apenas com a nossa sabedoria, transmitida por nossos ancestrais.
Defender o chão que a gente sempre viveu é perigoso.
Matam inocentes mas não abalam nossa coragem.
Estar aqui, estar aí, tudo é uma terra só...
Tudo é guerra de poder...
Não esperamos nada que venha de fora.
Somos aqui, um pelo outro.
Somos a sombra e o escudo de cada guerreiro.
Aqui a gente cuida...
Nossa terra chora.
Os animais sofrem.
Homens da lei não fazem justiça aqui.
Esperança chega em cada sol.
Talvez seja este sol, neste céu que nos aproxima das histórias.
Não podemos sair daqui.
E nunca fugiremos dessa luta.
Mas se a justiça nos acompanha então estamos todos do mesmo lado.
Uma hora isso vai acabar.
Ou vão acabar com a gente primeiro..."

Cartas em Tempos (IX) - Do sertão


O caminhar é sempre solitário.
Estar a só nesta vereda também é prazeroso.
Deus há de ser só.
Mas há de ser três também.
E nós também...
Ele há de ser um pouquinho em cada um de nós.
Há de ser a natureza, os bichos, pois tudo, segundo sempre escutei dos meus avôs, é obra desse Deus.
Tem gente que tem mais bondade Dele.
Outros tem menos e além disso carregam mais maldade do tinhoso.
Deus e diabo se misturam no sertão e no coração das pessoas.
Um dia Deus no comando.
Noutro, o diabo infernizando.
E nesses dias que a perversidade está alvoraçada neste cangaço, há de sobrar corpo tombado na secura deste chão.
É guerra meus queridos, e bruta feito coice de burro bravo.
Tem guerra que não se vê.
Acontece na espreita da vida da gente.
Na lida de cada dia.
Na ausência das coisas necessárias pra sobreviver.
Não espero nenhum doutor engravatado que volve seus olhos pra este inferno de Deus.
Deus aqui se compadece pelo olhar dos conterrâneos.
De alguns somente.
Nem todo mundo tem vontade de ter caridade.
Há quem viva pra si e nada mais.
Aqui, a gente já pegou em armas.
Mas foi pra debandar contra uns forasteiros que vieram a mando dos engravatados.
Disseram que a terra já tinha dono e que nós éramos invasores.
Deram prazo pra gente se retirar.
Cada dia ameaçavam um tanto de gente.
Aqui o povo é ignorante mas não é massa de manobra nem desinteligente.
A notícia se espalhou logo.
E tão breve formamos um batalhão de gente disposta a morrer pelo chão.
Ninguém noticiou o episódio.
O sertão também ajuda aos filhos do cangaço.
Os pistoleiros a mando do poder não conheciam este nosso chão.
Nossa sorte.
Emboscamos eles.
Os que não se aleijaram pelas balas de espingarda, tombaram direto nos braços do capeta.
Não perdemos nenhum de nossa gente.
Do lado de lá, poucos se sobraram.
E destes, nunca mais voltaram.
Ganhos fama pelo sertão.
Que aqui tinha um batalhão de jagunço que brigava feito o cão.
Justiça foi feita!
Meus queridos de outras guerras, de confins que eu desconheço além desse meu sertão...
Que vocês tenham sempre a justiça divina no coração.
E não esmoreçam frente aos inimigos.
Se é pra brigar, que sejam dignos, honrados e vencedores.
E nenhum aprendiz de diabo vai lhes fazer afronta."

Cartas em Tempos (VIII) - Da rua


"Nada tem sentido.
Manter-se vivo é sacrifício.
O mundo é movido a poder e miséria.
A guerra é o ápice desse contraposto.
Daqui do meu mundo faço minhas próprias batalhas.
Sempre perco, sempre venço.
Sou meu dono, meu algoz.
Nossas vidas, meus caros, estão entrelaçadas.
Estamos interligados pela dor, pelo esperança, pelo futuro...
Hoje é um dia sóbrio.
Porém, frio, cinzento.
As pessoas saem menos de suas tocas.
A movimentação diminui pelas calçadas.
Nem mesmo as pombas aparecem para comer os milhos que os vovozinhos jogam pelas praças.
Vez ou outra nos dão milhos...
As sobras dos finais de semana.
Tem muita fartura.
É bom ser invisível.
Ninguém te atormenta.
Nós aqui é que somos vistos como o estorvo social.
Enfeiamos o cenário.
Principalmente quando estamos em frente a igreja.
Aquele monumento portentoso... com grades ao redor, vitrais de luxo e uma porta enorme...
Lá dentro falam de amor, caridade, paz...
Da porta pra fora quase pisam nossas cabeças...
Somos escórias, eu sei.
E não me importo.
Creio que importo é com os outros aqui.
De onde eu venho já fui soldado. 
Fui empresário, fui filho, fui meretriz, fui infeliz...
Não tenho mais religião.
Deus me livre desse diabo.
E Deus?
Vejo Ele todos os dias na cara surrada dos meus camaradas de vadiagem.
Quero mudar de cenário.
Caro soldado, quero dar novo sentido.
É isso!
Talvez, eu consiga ir para o fronte contigo.
Viver outras guerras..."

domingo, 22 de maio de 2016

Cartas em Tempos (VII) - Da guerra


"Caros soldados de outras guerras...
Receio não viver o suficiente para concluir esta carta.
Meus inimigos avançaram mais que o esperado.
Estão muito perto e o mínimo de respiro é essencial para não ser notado.
Aqui na trincheira, nesta manhã, o clima está sombrio e carregado com um ar encortinado de fumaça escura.
Não conheço o sertão, nem a mata, talvez o subúrbio.
A rua, entre a praça e o cemitério me é familiar.
Tantas histórias de guerra que me fico a pensar que não há lugar neste mundo que viva em paz.
Nem mesmo as religiões foram capazes de sustentá-la.
Aliás, é mais provável que ela também é um canal de disseminação.
Aonde o homem chega, tudo se esvai...
É vero que os bons morrem cedo.
Talvez fosse interessante ser condecorado assim.
Mas hoje, já quero viver um pouco mais.
Espero sair daqui com minhas próprias pernas.
Creio que é o medo da morte que perambula mais perto neste momento.
Minhas munições me dão suporte até o fim deste dia.
Se economizar, adentro a noite e consigo voltar para a base.
Espero que os adversários não tenham tanta pressa em avançar mais por hoje.
Um gole de cachaça faz falta em dias de frio por aqui.
Percebo que somos todos entrincheirados pelas porventuras da vida.
Fizemos nossas escolhas.
Tivemos nossas decepções.
Vivemos nossas mazelas.
Perdemos e reencontramos a esperança por diversas vezes.
Questionamos a Deus o tempo todo.
E confesso, tem dias que me inspiro apenas em alguma formiga que caminha solitária ao meu lado.
Ela pode ser a última forma de vida que meus olhos vislumbram naquele momento...
E me pergunto o porquê das coisas serem assim.
Deus, deve ser um menino levado e de coração bom.
Só pode ser assim.
Ele testa as pessoas dando a liberdade para o erro.
Quem se redimir, consertar-se, este terá um cantinho merecido junto dele.
Ou não!
Sei lá...
Hora de voltar pra base."

Cartas em Tempos (VI) - Da rua

"A rua é minha casa.
A praça é o meu trabalho.
Talvez até seja o ponto de encontro com outras almas penadas que teimam sustentar seus corpos de zumbis.
Tudo na vida é uma guerra.
Tudo tem preço.
E daqui do meu lugar ninguém vê valor em nada.
Não tenho família, nem teto, nem nome, nem vida...
Sou um desertor dessa guerra, dessa vida.
Meu santo protetor das noites frias é uma cachaça de quinta.
O chão é o meu lar.
Na praça encontro outros zumbis sem passado.
Muitos eu desconheço o nome.
Isso não interessa.
Nos agrupamos numa espécie de proteção.
Sozinhos somos presas fáceis.
Já perdemos vários companheiros, vítimas de humanos desalmados...
Mas aí a polícia nos dispersa na sutileza das cacetadas.
Acho que inspiramos a vadiagem...
Ou talvez, estragamos a vista das praças.
É... pode ser isso mesmo.
As vezes, persisto em ficar no gramado em frente ao cemitério.
Lugar mais sossegado.
As pessoas parecem nos respeitar mais quando estamos lá.
E então me pergunto: qual a diferença entre os mortos ali enterrados e a gente que persiste do lado de fora?
Apenas um muro nos separa...
Eu, desertor da vida, combatente de mim mesmo, já me dei por morto em outras vidas...
Os que jazem enterrados, estes sim, estão num descanso de verdade.
Invejo sua paz...
Família?
Já a perdi quando nasci.
Não tenho pais, nem irmãos, nem parentes...
Eu desisti deles.
Não merecem.
Meus companheiros são de verdade e me respeitam.
Espero um dia não mais precisar desistir.
E nesse momento, com certeza já estarei deitado do outro lado do muro.
Soldado!? Resista firme!
Homem do sertão!? Eu te admiro!
Índio!? Você tem o meu respeito!
O do subúrbio!? Tome nota da minha história!
Um dia, quem sabe, a gente senta num banco de praça pra rir das desgraças da vida e tomar um gole de cachaça?!
Se não for aqui, que seja arriba ou abaixo."