sábado, 6 de janeiro de 2024

Vidas Secas das ruas



Vi um senhor passando na rua. Estava puxando uma carrocinha carregada de recicláveis. Corri e peguei as sacolas com os plásticos recicláveis que sempre guardamos e fui entregar a ele. Uma simplicidade em pessoa, poucas palavras e muitos agradecimentos pelos materiais que o entreguei. Mas essa não é parte principal. Não se trata dos descartáveis, muito menos no meu movimento de entregá-los ao senhor da carrocinha. 

Assim que atravessei a rua em direção a esse senhor, sua carrocinha estava parada junto à calçada e ele estava conversando com outro senhor. Este, estava sentado na calçada sob a sombra de uma árvore comendo um pão. Apenas um pão. 

Ao retornar ouvi o senhor que estava sentado à calçada oferecendo um pão ao homem da carrocinha. Este aceitou e disse que estava mesmo com fome. Estavam numa boa prosa, comendo pão, apenas pão. 

Minha mãe havia acabado de fazer café. Coloquei dois copos e voltei com os dois homens. O da calçada é morador de rua. O da carroça já tinha visto algumas vezes pelas ruas. 

Mais do que saborear o café, seus olhos transbordavam alegria e agradecimento. O sentir-se notado numa sociedade que não respeita a condição alheia resgata um pouquinho de dignidade e devolve fios de esperança e coragem para enfrentar as batalhas diárias.

A prosa com pão e café mereceu uma pausa no tempo para ambos os protagonistas. 

Dias depois concluí a leitura de Vidas Secas de Graciliano Ramos, um clássico que já acumula mais de 85 anos desde seu lançamento, e não pude deixar de correlacionar a ficção experenciada pelo olhar do autor, com as cenas que contemplei na rua. 

As ruas estão lotadas de personagens como os do livro, vivendo suas mazelas diante de tantos olhares indiferentes frente às suas Vidas urbanamente Secas. Fios de esperança frente a um gole de café, é como gotas de chuvas que minguam no sertão, vez ou outra, como Graciliano Ramos bem nos contou.

Na ficção o fim foi incerto, triste, desesperançoso. Na vida real, há muito o que se pode fazer com poucas atitudes... basta não apenas olhar, mas enxergar que existe vida.