domingo, 9 de março de 2014

A máquina de costura da Vó Landa



 Longos anos se passaram mas as cenas ainda vêm como um filme em minha memória... Minha avó sentada de frente à máquina de costura, de marca Rossini, com estrutura de ferro e caixa de madeira pura, remendando as roupas de trabalho do meu avô Joaquim. Mãos e pés sincronizados na tarefa, talento de sobra para quem tinha apenas a segunda série. Pouca leitura, escrita imperfeita e curta e uma vontade suficientemente grande que superava as limitações.

A máquina de costura enfim chegou às minhas mãos. Permaneceu com minha mãe, foi para uma tia, retornou para minha irmã e agora jaz comigo. Sem espaço e juntando poeira na garagem, hoje resolvi dar o ar da graça e arrumar um canto decente, digno de uma relíquia carregada de história, memória e saudade. 

Encontrado o lugar e uma nova função, mãos à obra! Os pés foram restaurados em esmalte preto. A caixa de madeira por enquanto recebeu apenas o lustre de uma cera. O próximo passo em breve será lixar para retirar os excessos e envernizar. 

Das nove da manhã às treze horas desse domingo foi o tempo suficiente para o trato na relíquia. Poderia ter sido mais rápido se a pintura fosse com um spray ou outro equipamento de sopro. Mas não, não teria graça. Contorcer-se para pincelar os detalhes de cada peça fazia-me viajar no espaço e no tempo de quanto eu, ainda criança, ficava ao redor de minha avó enquanto ela costurava. 

Pude conferir a originalidade das peças, a robusteza e a qualidade, coisas que hoje não se encontram mais nos produtos modernos. Estamos na era do descartável. As coisas são feitas para não durar. Interessante também que numa das gavetinhas dessa máquina encontrei uma moeda que data de 1927 e tem o nome do então Presidente Getúlio Vargas. Uma relíquia dentro de outra...

A máquina não será mais usada em sua função de costura. Décadas de trabalho renderam-lhe hoje um lugar de destaque na minha casa, com direito a restauração e recordação constante. No pequeno corredor que liga os quartos ela se ocupa de um espaço notório. Deixei de lado meus estudos nesse dia, os de português, filosofia, antropologia, teologia, para deleitar-me nas ciências da saudade, da memória, da história e do coração, sem controlar a nostalgia nem a utopia. Recordar é viver. E o que sobrevive de cada um é a memória que se perpetua na história de vida. Meus avós maternos e paternos estão sempre vivos aqui comigo, independente das relíquias que me foram deixadas.

Hoje, filosofei, teologizei, fiz a antropologia das coisas, e reaprendi que não há tempo que apague as lições daqueles que nos educaram com amor, que edificaram a família na simplicidade e muitas vezes na falta de um conhecimento avançado, mas que jamais abandonaram os seus. O exemplo se faz com pequenos gestos que o dinheiro não compra. A presença forte era o esteio de nossas relações. Pão com manteiga e café puro pela manhã, um ovo mexido com arroz no almoço dentre outras coisas, eram saboreados com um paladar que hoje, caso pudesse voltar no tempo, eu não trocaria por nenhuma iguaria já experimentada, tamanho o amor com que tudo acontecia. 

Tento retransmitir tais valores ao meu filho para que a essência seja sempre mantida independente das regalias. Novos tempos, outras educações, outros valores num mundo imediatista e descartável. Nosso diálogo é reto e focado ao cuidado que se deve ter com o que essa era digital banaliza sem pudor. 

Mas enfim, cada qual no seu tempo, desfecho essa costura de recordações, pensamentos e orações, com destaque para a Máquina de Costura da Vó Landa. Feliz pela restauração. Acredito que ela também estaria feliz ao ver sua relíquia com cara de nova. Imagino até suas palavras: "Ah, meu fio... ficô uma beleza!" 

De cantinho da saudade a cantinho do pensamento, renovada e cercada dos meus livros, com destaque para a Bíblia de sua dona que ocupa o centro, a máquina repousa imponente no silêncio, carregada de histórias que ouvia, enquanto sua maestra a orquestrava com mãos e pés...