domingo, 23 de março de 2014

Guerra dos Mundos - Parte IV - Prisioneiro de Guerra


Estar onde não queria estar...
Numa das celas, trancafiado com outros prisioneiros, todos capturados em tempos de guerra, estava um homem incomum. 1012 era a forma como o chamavam durante a contagem que acontecia rotineiramente em todas as manhãs, finais de tarde e para as determinações das tarefas. Um codinome que expressava apenas mais um dentre milhares, ou melhor, uma peça com carimbo de pertença a alguém, a um estado, a um sistema. Objeto descartável que poderia ser dispensado a qualquer momento por qualquer motivo torpe. 
Vez ou outra uma chamada extra acontecia de surpresa. Qualquer atraso a se apresentar era passível de penalidades que poderiam ser desde a proibição de refeições diárias como escala tripla de trabalho ininterrupto que duraria até três dias e três noites. 
1012 era um homem reservado e de semblante sereno que conseguia transmitir um olhar de tranquilidade mesmo nas condições de maior tensão e medo. Não demorou muito desde sua chegada na prisão para que os companheiros de cela o notassem como alguém diferenciado. 
Sem poder ler nem escrever, proibidos do diálogo, vivendo uma vida literalmente regrada a ínfimas rações e um trabalho penoso, restava apenas o mundo do pensamento para se libertar das escravidões impostas ao corpo.

Todo começo é difícil para quem é jogado numa cela. A sensação de impotência, refém não só do sistema mas do tempo que não se controla nem se quer se segue são sintomas para conviver dia e noite. Esperar por um milagre ou uma reviravolta no tabuleiro da guerra são raios que cruzam o pensamento como fiapos de esperança. Um dia, tudo poderia acontecer, inclusive o prêmio da liberdade devolvido a cada dono legítimo de sua própria vida. Para isso, porém, era preciso sobreviver. Viver um mundo fora do espaço onde seu corpo estava. Alma e corpo, nesse momento, deveriam andar por ruas e ruelas distintas, paralelas talvez. O corpo poderia até sofrer mas a alma deveria estar sã e salva para o dia da vitória. Muitos sucumbiram, entregaram-se ou arrancaram de si a própria vida à viver sobre a mira da tortura e da incerteza.
Antes do fatídico dia em que fora preso, 1012 vivia uma vida modesta ao pé da montanha cercado pela exuberância da natureza que lhe proporcionava com sobras tudo o que era necessário para sua sobrevivência. Experiente da cidade, resolvera abdicar-se da vida urbana para reencontrar-se consigo e com Deus em busca do sentido de sua vida após viver um amor platônico. Dedicara-se então às artes naturais, leituras e escritas poéticas. Vez ou outra recebia visita de alguns familiares. Seus três filhos não perdiam a chance de estar ao lado do poeta errante nos finais de semana e sempre que um feriado quebrava a rotina dos dias. 
O poeta da montanha, como sua filha, a caçula, o chamava carinhosamente, já se preparava para uma possível prisão desde que a guerra estourara por aqueles lados. Ele sabia, diante de tantas obras que lera nos últimos oito anos que esteve ali entregue e se entregando ao pensamento, às poesias e à natureza sagrada, que caso fosse encontrado e levado para algum campo de concentração e jogado numa cela, somente seu pensamento não só o libertaria da escravidão mas principalmente o manteria vivo e intacto para um possível retorno. 
Os inimigos romperam as fronteiras e chegaram até sua casa ao pé da montanha onde um riacho rasgava seu quintal. Ele estava, no exato momento, deitado numa rede na varanda ouvindo cantos de pássaros que se aninhavam no pequeno pomar quando o estampido dos tiros causou um sobrevoar desordenado e assustado das aves. Não se moveu. Permaneceu inerte deitado em sua rede. 
Menos de dez minutos se passaram desde o primeiro tiro até a chegada dos homens que o levariam de seu reduto até o confinamento para além das fronteiras. Num dialeto pouco entendido o primeiro soldado que despontou em sua vista gritava para que ele se levantasse da rede e deitasse com o rosto voltado ao solo. Sem pestanejar obedeceu. Fez o sinal da cruz e deitou-se. Rezou, orou, sentiu medo, engoliu o choro fruto do receio de não poder voltar a sua terra e rever os seus... 
Revistado e já em marcha, escoltado por cinco soldados armados, só podia desviar seu olhar sem virar a cabeça. Olhou para o céu, para o alto da montanha, para o riacho; inspirou o ar profundamente, ainda ouvindo o canto distante dos pássaros e firmou seu pensamento dizendo para si que seria apenas mais uma viagem. Não seria o fim mas o libertar de uma amarra, o romper de um silêncio imposto, uma nova luta pela liberdade, pela vida, a sua própria vida...
Passaram-se exatos oitenta dias e ainda não se ouvira nenhum murmúrio sobre o fim da guerra. Era uma manhã fria, típica de um domingo de inverno. 1012 lembrava que neste dia as comunidades rurais se reuniam para a celebração na igreja de Nossa Senhora Aparecida no alto da montanha. A sirene tocava ainda mais cedo, propositalmente como um castigo a todos os prisioneiros. Castigo que não merecia nenhum motivo para acontecer. Levantou rapidamente ao primeiro sinal. Numa cama de três andares ele repousava sobre as tábuas do meio. Seu companheiro de baixo tinha o sono mais pesado e já sofrera altas punições. Sabendo disso, tratava de acordá-lo.
Todos em pé ao lado de suas camas. Ao apito puseram-se a caminhar para o pátio e seguidamente a correr ao redor dos pavimentos. Os soldados já sabiam que dentro em pouco tudo poderia mudar. Uma força tarefa poderia aparecer e libertar todos os reféns, mas a ordem do diretor que administrava aquela unidade de concentração, um dos mais carrascos, era jamais abrandar ou facilitar a estadia dos entulhos, forma que tratava os prisioneiros.
1012 sentia que algo estava acontecendo. Percebia as conversas que alguns soldados faziam sem mais se importar com quem estava perto. Não passaram muitas horas para ouvir aviões com bandeiras dos aliados sobrevoar aquele campo. Bombas estourando cada vez mais perto. O medo agora passava de lado.
Uma sirene intermitente soou. Era hora de se recolher no galpão. O desespero tomava conta dos enumerados prisioneiros pois sabiam que aquela sirene era sinal que alguém seria executado por algum motivo. Todos já recolhidos e o diretor apareceu com um sorriso diabólico e ao mesmo tempo sarcástico. Para espanto, o homem severo avisa que a guerra chega ao fim mas como alguns internos estavam em débito, esses deveriam pagar com suas vidas.
Os sentenciados sentavam em ordem numérica para facilitar a contagem. Os lugares vazios significavam que aqueles já haviam quitado suas dívidas tendo a vida arrancada de si. Haviam fileiras com mais de dez espaços vagos. Alguns números eram convocados a se dirigirem para um palanque onde a sentença era executada. Dessa vez não haviam centenas de soldados, apenas o diretor e seus três capatazes, que juntos eram conhecidos como o quarteto do inferno.

1012 sentia as mais diversas sensações, o gosto da liberdade se aproximando e trazendo para perto tudo o que havia deixado em seu recanto ao pé da montanha, bem como as recordações, os filhos e sua história, mas também o medo por sentir tão próxima a remota e não improvável possibilidade do diretor escolhê-lo para um sacrifício em seu derradeiro show de horror e sangue. Alegria e medo, suor e batidas descompassadas, desde que chegara aqui essa era a primeira vez que não conseguira controlar suas emoções.
Fechou os olhos e tentou ouvir o som da voz que sempre lhe acompanhara, o de sua avó, aquela que o educara e lhe dedicara amor. Sobreviveu até ali e não poderia morrer sem ver novamente o brilho da liberdade que o sol trazia além dos muros do isolamento. Elevou seu pensamento ao céu, rogou a Deus por sua vida e logo ouviu uma gritaria seguida por uma grande correria. Apenas um prisioneiro fora executado. Quando este número caiu por terra, uma massa de gente correu em direção ao diretor e seus comparsas e ali findaram com os carrascos do horror. 
Abriu os olhos e seguiu a grande massa que corria para a liberdade. Não haviam mais soldados. Estes já haviam fugido. Os portões foram abertos e cada um seguiu seu caminho. Nesse momento a força tarefa de libertação já cercava aquele campo. Os mocinhos enfim chegaram.
1012 poderia enfim regressar de sua última jornada. Um comboio de veículos escoltados percorria os mais distantes vilarejos e cidades, deixando os filhos de sua pátria sãos e salvos. Em cada lugar um festejo sem limites regado a lágrimas de saudade e de dor pelos que não conseguiram regressar. Muitos chegaram em macas, outros paralisados ou faltando parte de algum membro do corpo, porém vivos, ou melhor, sobrevividos.
O homem que soubera sobreviver ao inferno inimigo, refém de uma guerra que não havia comprado, fora deixado na porteira da entrada de sua casa. Um soldado acompanhava sua caminhada com os olhos. Seus filhos o esperavam na varanda. Foi um encontro de final de tarde onde o sol alaranjado se punha por detrás da montanha e a lua despontava cheia em seu contraposto. Uma verdadeira poesia da natureza iluminando o palco, a cena e o protagonista regressante que reencontrava os seus.
O pequeno caminhar, da porteira à varanda, foi um breve momento de solidão que penetrou a alma. Desde que fora preso e então regressara ao seu recanto, nunca havia ficado um único minuto a só, no silêncio. No campo de concentração tudo o que havia de fazer sempre era em grupo de no mínimo cinco pessoas. Ao escurecer, todos se aninhavam nos barracões de chão de terra. 
Um filme passou por sua mente. Tantos números que tiveram seu sangue derramado naquele lugar, histórias que foram interrompidas, pessoas que voltaram mutiladas não só no corpo mas principalmente na alma... Precisava extirpar de si o máximo de recordações que aquela estadia lhe havia imposto. Era preciso sobreviver e por mais que conseguira impor ao pensamento o máximo de cuidado e o levado para além daquele reduto, ainda assim a experiência fora traumática.
Olhou para a montanha, enxergou a capela ao longe. O barulho das águas do riacho com o canto dos pássaros também foram ouvidos e sentidos. Não segurou a emoção e as lágrimas rolaram por sua face. Seus filhos correram ao seu encontro. Ajoelhou e estendeu suas mãos por terra como que numa tentativa de agarrar-se ali mesmo e entregar-se à natureza para que ela se incumbisse de romper as amarras que ainda o prendiam. Eles o abraçaram longamente. O soldado então retornava para o veículo que o aguardava para seguirem seu destino. 
Lágrimas e terra, saudade e reencontro, dor e lembranças, história e esperança, reza e labuta, oração e reflexão, sol e lua, poesia viva que ardia em seu peito. Uma explosão de sentimentos, os quais fora obrigado a conter para assim sobreviver.
Seus dias não foram mais o mesmo. Nunca mais seriam... Noites transcorreram que seu sono fora interrompido por pesadelos, fruto das cenas de horror que presenciara e das torturas psicológicas que tentavam impor-lhe naquele inferno humano.
Homem de fé, amante da vida, considerava-se eterno aprendiz dessa mesma vida que tanto lhe abençoara. Seus filhos eram o seu tesouro, como ele mesmo fazia questão de dizer em cada reencontro.
A vida seguiu seu leito como o riacho que levava as águas para alguma determinada direção, para outro rio, para o mar... O tempo em que teve sua liberdade roubada servira para alguma coisa; queria viver o tempo que ainda lhe restara, o amor acima de qualquer coisa. Sobrevida, era assim que chamava o tempo que voltara a viver em liberdade. Então, era preciso despojar-se e realmente entregar-se aos sonhos. 
Muitos libertos daquele campo sucumbiram em sua própria liberdade. Alguns com menos tempo de prisão que o 1012 cometeram suicídio após adquirirem sua liberdade de volta. A prisão foi tão marcante que já não sabiam viver a liberdade. A pior guerra havia começado dentro de si, a guerra na alma e no pensamento. 
Sobreviver a um tempo que lhe é de espera, aceitado ou imposto, é uma artimanha que somente o pensamento, a determinação e a fé podem lhe confiar. Viver uma vida fora de seu corpo foi a arma usada pelo prisioneiro 1012. Havia um motivo, havia um objetivo, havia um sonho, e o mais importante, ele queria vencer esse tempo. Saber esperar, sobrevivendo entre arames e pressões, com pessoas que não lhe davam importância, foi mais que uma vitória, foi um recomeçar, um reaprender a viver...
Prisioneiro de guerra todos somos em determinadas situações. Somente alguns conseguem alcançar o milagre da espera no tempo e viver o sonho que o coração sempre sonhou...