sábado, 16 de setembro de 2023

De setembro a setembro


Um olhar humanamente teológico sobre as pessoas que perderam o encanto pela vida, o sentido da existência e a esperança no mundo. Setembro Amarelo deveria ser uma luta de todos os dias e não somente quando as mídias jogam os holofotes para o assunto. É positivo entrar nessa campanha de mobilização e prevenção ao suicídio. Porém, mais belo do que estampar os perfis de amarelo e cobrir com frases de efeito é necessário se atentar para o nosso papel social enquanto indivíduos de um sistema que oprime, desqualifica, exclui, negligencia e ignora os verdadeiros motivos que têm levado algumas pessoas a pensarem na possibilidade de atentar contra a própria vida e outras, de fato, na esperança de se curarem das dores da alma, infelizmente, executam seu plano. 

Se a dor de quem fica é grande, imagina a dor de quem preferiu não viver mais. Não existe covardia nem heroísmo nesse ato, ou, dependendo da óptica, também pode ser ambos. Pecado? Talvez. Olhando pela bíblia cristã, o quinto mandamento diz "não matarás". Sendo assim, tirar a própria vida, segundo a bíblia cristã é um pecado. Porém, ainda segundo a mesma bíblia cristã, não é algo digno de condenação eterna e sem direito a perdão. Esse é um pensamento popular que ganhou força nos redutos das igrejas mas que não tem fundamento bíblico. Segundo o livro sagrado cristão, o único pecado que é causa de condenação eterna ao inferno é o de "blasfemar contra o Espírito Santo". 

Se considerarmos as pessoas que dão sua vida em prol de uma causa religiosa, conforme algumas religiões ultra radicais, que as instigam a se tornarem verdadeiros homens ou mulheres bombas, as mesmas são consideradas mártires com promessas e garantias de uma vida eterna e digna no Paraíso, no Céu, etc. Durante as guerras surgiram os camicases que, não tendo mais o que fazer, lançavam-se com seus aviões no território inimigo na tentativa de abater o maior número de adversário possível. 

O que difere cada ato de tirar sua própria vida: uma causa, uma esperança, uma promessa, um sentido? Ou, talvez, a falta de cada uma dessas possibilidades ou, todas e mais um pouco? A esperança que um homem bomba tem ao se permitir explodir em prol de uma causa político-religiosa não seria a mesma esperança que uma pessoa, que perdeu seu sentido de viver, tem para amenizar sua dor da alma? Essa última perdeu o sentido da vida, mas está sobrecarregada de dor. Tirar a vida não significa covardia mas, livrar-se da dor que ninguém sabe que existe nela, e por mais que saiba não consegue entender.  Como não teremos jamais a resposta sobre o motivo de tal ato, sempre dialogaremos a partir dos relatos deixados de sua caminhada. A cadeira vazia será apenas um cenário de dor e luto por parte de quem ficou sem respostas. 

E qual seria o nosso papel social, religioso, político ou simplesmente humano (o mais importante) para contribuir com essa luta de prevenção ao suicídio? Estamos numa era em que as informações que nos chegam são como uma tempestade em nossos pensamentos. Creio que não percebemos mas, muita gente se encontra esgotada mentalmente pelo excesso de informações que são oferecidas aos milhões, minuto a minuto. Esse excesso também pode contribuir para o desequilíbrio emocional, o que afeta diretamente as relações diretas e indiretas de cada pessoa. 

A sociedade egoísta que ignora; as religiões com suas regras morais que exaltam as leis em detrimento do ser humano e da vida; as políticas, sejam as públicas que são falhas por conta do dinheiro que se desvia e não chega aonde precisa, sejam os representantes escolhidos pelo voto nos Estados e municípios, que se esquecem do seu compromisso com o povo e legislam em causa própria. Junte-se a isso a falta de recursos para coisas básicas. Muitos "próximos" sucumbem à tentação de deixar de existir num mundo onde não apenas se sentem invisíveis mas são tratados como escória. 

Numa pesquisa de trabalho realizado durante o curso de Teologia, nos deparamos com índios da tribo Guarani-Kaiowás que preferiam tirar sua própria vida a viverem fora de suas terras, que naquele momento foram tomadas por latifundiários. A dor de viver fora do seu habitat, da sua casa, e sobreviver nas beiras das estradas, era um dos motivos de desordem emocional e desonra para si. 

A dor alheia é algo que não conseguimos mensurar. Seja uma dor física ou, pior ainda, uma dor da alma, aquela que não se vê mas que mexe com todos os sentidos. Para a dor física existem remédios de resolução imediata. Para a dor da alma, existe uma demora para se chegar num ponto satisfatório de entendimento para então, de forma lenta e gradativa organizar as coisas que estão fora do lugar em seu pensamento, em seu íntimo, em sua história e na falta de expectativa. 

Enquanto seres humanos, não nos custa levar um pouquinho de alegria, ou no mínimo ouvidos para as pessoas ao nosso redor. Não temos condições para salvar o mundo, mas podemos contribuir dando um mínimo de atenção para aquela pessoa que antes sorria atrás de um balcão e hoje se quer solta um "bom dia". Familiares que passam a reclamar da vida mesmo não faltando nada. Solitários ao nosso redor, regados de silêncio, timidez, e dificuldades de interação, dentre outros tantos, não custa acolher. Acolher no sentido de deixa-la sentir-se vista, notada, ouvida. Não precisa de muito. Um simples "tá tudo bem?" pode ser o essencial para salvar o dia e os pensamentos de alguma pessoa próxima que vive seus dias de tribulação.

Não importa a orientação sexual. Pecado é não amar! E, não há cura para o que não é doença! Antes da piada, antes da crítica, pense que uma palavra pode ser a melhor ou pior coisa que a pessoa com ideação suicida pode ouvir naquele momento e você nem sabe. Não sabemos quantas guerras habitam na pessoa com quem cruzamos todos os dias de nossa jornada. Por isso, empatia e respeito, é a melhor acolhida que podemos dar. 

Para quem sempre cita a bíblia, em especial as rígidas leis do Antigo Testamento, eis que me deparo com um pensamento, o qual desconheço seu autor, mas que simplifica e alivia quando me deparo com pregações grotescas e de ódio: "Jesus não voltou durante a escravidão. Não voltou durante o holocausto e nem durante as cruzadas. Mas, vai voltar agora por causa do gênero de alguém."

Uma igreja que não acolhe as minorias e suas diversidades já perdeu seu papel aqui na Terra. Uma política que não cumpre com sua função de bem comum só serve para alimentar os lobos no poder. Uma sociedade que não percebe a dor alheia, já deixou de ser humana com seus semelhantes. E por que esse discurso em meio à campanha Setembro Amarelo? Porque tudo isso pode ser causa, mínima ou máxima para alguém que está desacreditado de si, sobrecarregado de dores, cometer suicídio. 

Há inúmeros fatores que levam as pessoas a buscar o suicídio: a inundação da dimensão de sombra, transtornos psicológicos, doenças incapacitantes, profundas decepções e prolongadas depressões. Mas mais que tudo, a perda do sentido da vida que suscita nas pessoas vulneráveis o impulso de desaparecer. Não raro, tirar a própria vida é uma forma de buscar um sentido que lhe é negado nesta vida (franciscanos.org.br). E "Não é a maneira como uma pessoa morre que determina se ela é salva ou condenada" (https://teologiabrasileira.com.br/o-suicidio-da-razao/).

Somos corresponsáveis direta ou indiretamente pelas vidas ao nosso redor. A omissão é algo que poderemos somar na cartilha da consciência como culpa, frente ao que poderíamos ter contribuído mas não o fizemos. 

A imagem desse texto foi utilizada como convite para o evento do dia 15/09/23, na Casa das Cenas, em Uberlândia-MG, para um encontro realizado com pessoas de diversos segmentos da sociedade. Um público misto em todos os sentidos. Através do Psicodrama e Cinema, trazendo uma ótica da Psicologia pela minha colega Ana Elisa, enquanto eu, da Teologia, discutimos o suicídio dentro do contexto do filme "Orações para Bobby". É um filme que está disponível no youtube, portanto de fácil acesso. Ali, sentimos o peso da falta de apoio familiar diante da homoafetividade por um dos membros dessa família, o peso do conservadorismo religioso que passa a manifestar um moralismo seletivo, a sociedade que exclui, os familiares que se afastam, as auto condenações por conta do que se considera pecado conforme os ditames de sua religião, até a ideação suicida. Deixo aqui, como forma de continuidade nessa reflexão, um convite para que assistam ao filme. 

https://www.youtube.com/watch?v=IIYNfCoGgUQ