terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Pobreza de espírito x Delírio de grandeza


Nem parece que recentemente estávamos enclausurados por um vírus que dissipou vidas em todos os cantos do mundo. Mesmo e ainda com a necessidade de doses extras de vacina, para a devida prevenção contra as mutações do coronavírus, a grande maioria das pessoas esqueceu-se da COVID-19. A palavra pandemia já não causa aquele impacto de medo e sensação de impotência quanto causou nas primeiras semanas, em meados do primeiro semestre de 2020. 

Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde) a pandemia foi decretada em 01 de março de 2020. Apesar de termos retomado às atividades normais de trabalho, lazer, sociais, etc, ainda existem surtos em vários países e regiões do mundo. Foi um tempo sem luz, e até sem perspectivas de superação diante dessa crise de ordem mundial. Mesmo depois de tantos avanços tecnológicos, de tantas potências da ciência empenhadas no desenvolvimento de um antídoto que nos imunizasse, isso não amenizou nossos sofrimentos, medos e angústias. Centenas de pessoas morreram diariamente. 

Além de tudo, ainda precisamos enfrentar obstáculos de ordem política que pareciam se opor à ciência, contra a vacina, contra a cura, contra as vidas humanas... Uma verdadeira inversão de valores em que os eleitos pelo povo para cuidar e proteger o povo, na verdade eram os ceifadores, uma verdadeira máquina de morte contra o povo. Parecia que esse sistema de política excludente estava a favor do vírus e das mortes. Contra fatos não há argumentos. 

Mas, não é esse o objetivo desse texto, apesar de sempre precisarmos refrescar a memória de quem ainda continua cegado por suas ideologias partidárias. Mergulhemos um pouco mais fundo no cerne da reflexão. Considerei importante buscar fatos relevantes de nossa recente história para então aprofundar nas questões da essência.

Voltamos às correrias da vida. Retomamos o controle das situações cotidianas. Vivemos na intensidade das aparências como se não houvessem amanhãs. Enfim, rotinas viciantes em busca do mais, do ter, do conquistar, do adquirir, do consumo sem precedentes. "Vida para consumo", "Modernidade Líquida", "Tempos Líquidos", "Amor Líquido", todas obras de Zygmunt Bauman, descrevem atentamente sobre o consumismo exacerbado que potencializa a sensação de poder em detrimento do ser. E quem precisa do "ser", numa sociedade de memória curta que ostenta as aparências do "ter"? Máscaras?! Só as de maquiagem, ou da hipocrisia, ou da ignorância, ou da inocência ou da conivência. 

Li e ouvi muitas frases conscientes que "sairíamos melhores, evoluídos, com os princípios renovados", após essa pandemia. Isso até pode ter acontecido com uma minoria. A grande massa retomou sua rotina com sede de fazer em dobro tudo aquilo que deixou durante as quarentenas da pandemia. 

Não. Infelizmente, a geração que sobreviveu à pandemia não conseguiu superar a si mesma. O poder de consumo está ainda mais entranhado na sociedade, e nós, os famosos seres pensantes e dito evoluídos, de tão consumistas parecemos vampiros sedentos por sangue. Literalmente sangue humano. O "ter" consegue classificar e definir uma diferenciação entre os humanos. Trabalhamos para ter, e quando temos, precisamos ter ainda mais. Um looping frenético e eterno. Um ciclo inquebrável nas cadeias sociais. Essa espécie precisa reaprender a ser humana. 

A pobreza de espírito se resume naquilo que de fato falta em essência no ser de cada um. O delírio de grandeza é aquilo que sobra exageradamente do resultado das cegas ações em busca de ganho, poder e consumo. O ganho, o poder e o consumo tornou-se premissa religiosamente sagrada para quem precisa de alguma forma romper e vencer. Romper o que? Vencer a quem? Buscamos um algoz, um adversário, um inimigo para justificar nossas lutas, labutas, disputas e condutas. Líderes religiosos, gurus, e a nova onda do coching-ismo (que mistura de tudo um pouco) é o que alavanca o mercado dos milagres imediatos, em especial nas redes sociais. E quando as pessoas tentam aplicar essa idealização coaching-ista, a frustração é também imediata.

Bom, foi uma obra literária, "Cem anos de solidão", de Gabriel Garcia Marquez, que clareou a inspiração para o título desse escrito. Por sinal, obra maravilhosa. Márcia Tiburi, em 2019, nos apresenta uma de suas obras, "Delírio do Poder", que muito tem a ver com o exposto aqui. Uma correlação de duas obras a ser explorada noutra oportunidade.

O que de fato me conduziu para esse assunto foi a observação das pessoas ao redor e perceber o quanto suas rotinas malucas consomem seu tempo e as deixam ansiosas, estressadas e até doentes. Isso, aparentemente, sempre acontece ao final de um período, ou de um ciclo, ou ainda de um dia de intensa correria. Quando chegam em seus lares é como se todo aquele status midiático fosse apagado e ficasse impregnado em suas entranhas apenas o efeito colateral, o cansaço, o esgotamento e visivelmente o mau humor, ora demonstrado sem ressalvas aos que convivem no mesmo espaço. A busca constante e desenfreada sempre deixa uma sensação de vazio, por mais que as metas sejam alcançadas. O sistema, o mercado, a sociedade, o mundo respira e vive isso. Raras são as exceções, que não se limitam a essas regras.

Aqui estão apenas algumas constatações. Se aprofundarmos em pesquisas e diálogos, perceberemos que o iceberg é imenso. De tudo, a finitude da matéria corporal e da vida em si não interessa e não preocupa a ninguém. Estamos, enquanto seres ditos humanos, preocupados com o imediatismo. A pressa não é por uma vida profundamente vivida. A urgência é para estar na crista da onda, no ápice do mercado, no topo do status midiático, ser influencer na vida de um desconhecido seguidor virtual, e ponto. Aparências. Aparências visuais. Aparências em palavras. Aparências em maquiagens. Verdadeiras máscaras maquiadas que os gurus do mercado contemporâneo ensinam como ser diferente num mundo de desigualdades. 

Eles, os gurus, só não mostram sua rotina imperfeita, sua vida de fato. Isso não atrairia os fieis consumistas de seus produtos. É necessário se portar como se tudo fosse uma perfeição de aparências. O mercado exige isso. Quem não consegue acompanhar, não é apto nem digno para tal corrida. E nesse mercado, só é notado quem está em evidência de aparência. Há muito tempo, o conteúdo, a essência, o ser em si deixou de ser notado. Esse status, que também é de poder, segrega em todas as camadas sociais. 

Sem mais delongas para as máscaras maquiadas, ou biblicamente falando, os sepulcros caiados, as aparências portentosas do universo ao qual fazemos parte... Todos necessitamos consumir, ter, produzir, ganhar, sim. Hipocrisia dizer o contrário. A questão é quando isso se torna uma espécie de religião e o que há de mais sagrado acaba ficando à margem da única travessia que não há retorno, nem atalho, nem pausa: a vida. Que o que nos resta dessa travessia, possa ser experimentada de uma forma ainda não vivida nem encontrada em nós mesmos.