terça-feira, 21 de abril de 2015

Grande Sertão: Brasil - parte II - Prosas


Pensamentos, prosas e provérbios
Na contramão da imaginação
Minha arrumação teve de ser reajeitada
Era uma a minha intenção
Saber quantas casas ali tinham
E quantas famílias, quantas pessoas
Perspectivas, e situações
O pra quê de tanta investigação
Só fui entender nas prosas que ali travei
Que nada tinha mais valor
Que o calor de cada vida
Um borná, caderno, caneta e celular
A água na garrafa de usar nem lembrei
Procuro por alguém já conhecido
Não lembro o nome e então proseando eu sigo

"Pra que tu tá aqui?"

Digo que é um levantamento
E já embalo no proseamento
Querendo saber o que mais se precisa
Além de tudo de que se necessita

"Água e luz meu sinhô"

Responde o primeiro José
Cearense arretado
Sem pregas na língua
Personalidade honrada
Tem palavra certa
E uma fé em Deus
Que a todos abençoa
Minha pesquisa vai ficando de lado
Em cada história
Que o valente combatente 
Vai trazendo da memória

"Ah, meu sinhô, aqui a polícia visitava direto
Roubavam nos cafundó
E os home parava aqui só
Eu, já me enfezado, 
Um dia esbravejei e bem alto falei
Aqui mora homem digno e honrado
Tanto ladrão engravatado
E os ceis vem aqui na minha porta?
Depois disso, meu sinhô
Essa folia se acabô
Graças a Deus"


E as horas se passaram mas o tempo eu não vi
Seu José me dispensou
Quando logo se alembrou 
Que tinha um barraco a construir
Uma foto, seu José, pra eu guardar dessa visita
De braços abertos e sorridente
Braços fortes e honradez
Em meio a timidez sorriu contente
Meio sem rumo fui caminhando
Pra de volta da direção do meu mundo
Entre a via marginal e marginalizados
Encontrei a pessoa que procurava
Três crianças com febre
Mais ela e seu marido
Aguardando as roupas quarando no varal
Pra depois correr com os meninos pro hospital

"Não tem muita roupa
Tem que esperar secar"

Fui tocando mais adiante
E vi outro rosto conhecido
De outra missa que lá teve
Dona Francisca e seu marido, José
O segundo José, e três crianças
Que espreitavam numa piscina vazia
Fui tirando foto, com a licença devida
De tudo quanto é coisa que eu via
Na primeira tentativa seu José se recusou


"Pra quê tirar foto de um bicho feio feito eu?"

Deu alguns passos, colocou boné na cabeça
Pensou e se virou

"Então tira meu mestre
Se tu quer tirar, então tira essa foto"


Ficou um pouco distante de sua esposa
Mas sorriu e agradeceu 
Seu barraco precisando de telhas
Madeiras, tudo quanto é coisa de se imaginar
Fui sabendo de sua vida
Em cada provérbio que ele contava
E se esperançava quando se alembrava


"Quem sofreu foi nosso Senhor Jesus Cristo
Para salvar dos nossos pecados
Aqui o cabra tem que se avivê com o que tem
Tenho fé que logo mais
Noutra vez o mestre vai ter um lugar pra se assentá
Voltei pra Juazeiro e não tive ajuda lá
Vim pra cá porque aqui as pessoas ajudam
Nada me há de faltá
Tenho filhos de outro casamento
Que não querem saber de mim
Tive casas e tudo perdi
Pra bebida e a jogatina
Nessa vida só tive duas mulheres
Aos meus setenta e seis anos
Não sou um cabra mulherengo
Lá no trecho eu era conhecido 
Era o José Fogueteiro
Aqui, minha mulher não gosta mas eu falo
Sou o José Fodeteiro
Estou todo fudido meu mestre
Mas tenho fé que vou vencer"

Fui logo me despedindo 
Apertando aquela mão calejada
E percebendo aquela pele surrada
Aquele olhar que não se perde jamais
Quatro telhas era o necessário para seu José
Resguardar a família 
Pois seu barraco de agora
Quando chove, dentro molha


E nos passos de retorno pelo lado de baixo
Ao longe avisto uma mulher 
Suas roupas lavando agachada na marginal
Cadeiras amarelas e vermelhas ao seu redor
Era pros motoristas perceberem o sinal
Ali, naquele espaço tinha gente ocupada
Que desviem os doutores da estrada
Fui andando de volta
Com os provérbios dos meus mais novos teólogos
Fermentando em minha mente
Não dava pra continuar igual
Dali em diante, haveria de ser e fazer diferente
Meu almoço já em casa
Parecia descer quadrado
Eu precisava dar um jeito e lá voltar
Eu precisava com aquele seu José Fogueteiro
Mais uma vez prosear
E assim, mais tarde eu voltei
Lá estava ele deitado sobre um compensado de madeira
Sua cabeça recostada sobre um tijolo forrado 
Com um pano, o seu travesseiro
O barraco continuava o mesmo
As mesmas telhas estavam faltando
Não pude socorrê-lo naquele pedido
Dia de feriado, tudo fechado
Minha boca nada prometeu
Mas meu coração se comprometeu
E se eu não mais voltar
As prosas se perderão no ar
Mas minha alma nunca mais se aquietará
Diante de tudo isso
"Como posso me calar?"



"O Sertão é o sozinho, 
É dentro da gente
Está em toda parte.
Deus e eu no Sertão."
(Guimarães Rosa - Victor e Léo)