quarta-feira, 25 de março de 2015

Cartas do calabouço - Parte II


Caro amigo meu
Se infiel eu fui, foi comigo mesmo, espero
Suas palavras batem forte
Me traz a vida
E a dor de morte
Nem sei mais quem eu fui
Da onde vim
Ou pra onde vou
Indiferente é onde estou
Seja aqui, seja aí,
Em vão sinto que lutei

Realmente, vez ou outra sinto essa brisa
Como se um sopro fosse
Em dias que o silêncio me permito
Talvez, tenha confundido os ópios
E ao invés de omeprazol para queimação
Tomei foi dois prozac's com Platão
Sarcasmo meu caro amigo
Ainda não tenho essa ferramenta última
Mas a brisa, o sopro
Que me sussurra ao pé do ouvido
Quando cessa, 
A minha instantânea alegria
Sem eu perceber leva consigo

Procuro o buraco
O canal por onde adentra o vento
Nada, vazio, fechado
E no meio desse oco aqui estou-me
Destoando entre notas sustenidas
Menores, de tristeza, empedernidas
Lamentando-me o lamento mais lamentável
Canso-me de ouvir-me
E não consigo escutar-me
Estou só?
Cá estou-me
Cá e só

Não é o cíclico da vida que me angustia
Por mais que eu já tenha observado essa espiral
A monotonia envolto da matéria
A cegueira alheia é pior que a minha
Ninguém enxerga nada além do que se vê?
Estou aprisionado a este ócio
Melhor mesmo, para viver dentre os imortais
Estivesse envenenado pelo ópio

Amigo meu, por que me escreves?
Já não tenho mais palavras
Nem de vida nem de graça
Bons tempos aqueles idos
No quintal de terra batida
Entre couves e hortelãs
A ameixeira era o meu divã
Mocinhos e bandidos
No final da brincadeira, todos amigos
Inventar a história,
Começo, meio e fim
Era a melhor das puras redações
E a alegria vivia em mim

Amigo meu, gostaria de visualizar tua presença
Suas cartas me reavivam
E pra vida me reativam
Mas elas cessam no meu calar
Ouço, não ouço 
Tudo se consome
Tudo se corrompe
Tudo se escoa pelo tempo
E tempo, nem sei quanto tempo ainda o tenho
Ou se é ele que me consome 
Me corrompe e me escoa em si

Meu caro amigo
Que inflama este infiel de si
Tanto quanto quero reencontrá-lo
Mas antes, devo me reencontrar primeiro
Antes que eu me torne o derradeiro
A ousar a escapada desta tormenta
Do vazio incrustado que tanto lamento
Quero, tão somente, não morrer em vão
Nem passar a vida em busca de um sentido
Quero dar sentido ao que me resta
No aguardo de tuas novas batidas
Que me surram e me acalentam
Despeço-me com, pelo menos, um novo ar
O ar de tua anônima e ausente presença.