quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Um mínimo de utopia: dignidade

Uma boca de sorrisos imperfeitos. Olheiras profundas que retratam noites mal dormidas ou nem dormidas. A fome saciada sob a sombra de um muro qualquer num dia indeterminado em que uma nobre alma quis ser caridosa. A comida fora dada numa sacola plástica (...). Ou atirada de longe para não ter contato com o sujeito faminto. Têm "caridades" contaminadas com a hipocrisia religiosa. E por tal fede a enxofre. De longe vi um vulto abrigando-se sentado entre o muro e o portão. O rapaz fez daquela sombra um reduto sagrado para sua refeição. A primeira do dia, da semana, talvez. O sol escaldante das treze horas, creio, seja o único sentimento de sua pertença nesse mundo uma vez que está brilhando para todos. A comida era degustada incontrolavelmente. O talher era sua própria mão. Bermuda, camiseta, chinelos nos sujos pés e um sorriso desmedido. Tão desmedido quanto puro. Serenidade no olhar sombreado pelas fortes olheiras. Ele queria apenas um suco. "A comida eu já tenho, senhor." Atendi o seu pedido mas sabia que era necessário mais para aquele momento. Fui buscar prato e talher mas ele já havia se retirado da sombra. Foi uma partilha em que não fiz o que deveria ter feito de fato e mesmo assim recebi através da força daquele olhar de dignidade as gotas de esperança e de amor para a utopia dos meus dias.