sábado, 1 de novembro de 2014

O cerco e os cercados


Nascera um menino que fora capaz de mudar o mundo com seus ensinamentos. Foi filho, foi simples, foi mestre e com total maestria percorreu povos e povoados levando sempre uma palavra de esperança. Durante sua estadia neste mundo fora perseguido desde o seu nascimento. De tão humano chorou, sentiu dor, teve medo mas enfrentou sua difícil missão com obediência aceitando entregar-se à morte de cruz.

Na sociedade em que vivera, dominada por diversos grupos políticos e religiosos, sua maior missão era abrir as portas da vida aos excluídos, resgatar-lhes a fé e dar-lhes vez e voz. Tarefa ultra difícil num sistema hipócrita que facilmente condenava aos desafortunados pelo destino. Prostitutas, cobradores de impostos, ladrões, paralíticos, leprosos e outros endemoniados mais que viviam à margem desta sociedade excludente, eram estes por quem lutava e defendia.

Como todo sistema de governo, como todo modo de religiosidade hierarquicamente engessada a sociedade politicamente correta (e hipocritamente cega) fazia um verdadeiro cerco em volta de si. Colocava-se num patamar diferenciado, numa verdadeira redoma blindada, distanciando, segregando e condenando a toda gente "politicamente pecadora" que por acaso Jesus escolhera e acolhera. No centro deste cerco somente os homens e donos das leis. Não foi à toa que Sua opção era pelos sem opção alguma.

Dois mil anos se passaram e o que se percebe, aliás, o que se vê nitidamente sem precisar de esforço algum, é que o cerco ainda existe e cada vez mais os muros da exclusão se erguem rumo ao céu. Apegam-se às leis copiadas, mudadas, recriadas e deixam de lado a essência de toda a vida do Nazareno: a inclusão pelo amor. Deturpa-se a tradição e se faz uma interpretação ingênua, leviana e fundamentalista sobre os escritos da Bíblia. Usam as escrituras para condicionar a verdade ao povo de forma velada, persuadindo de forma inquisidora à permitir autonomia de pensamento, oprimindo à libertá-lo das amarras sociais. Eis o fato: condicionam a salvação como exclusividade de quem supostamente vive nos moldes ditados pela lei.

Não precisamos percorrer muito, basta adentrar os redutos da igreja e procurar saber o que algumas lideranças pregam. Será que o fundamento está na essência do amor ou na repetição da lei? Será que vale mais resgatar a vítima já excluída pelo sistema e trazê-la de volta à sua dignidade e à sua vida como um todo ou condená-la conforme as leis do tempo os seus atos, que por vezes são a última alternativa que lhe resta? Pois é, há líderes e líderes. Privilégio de conhecer pessoas de bem e o dissabor de cruzar com doutores da lei do meu tempo. Malafaia's, Feliciano's, Paulo's Ricardo's, dentre outros ícones que dão voz e força ao sistema excludente.

Numa dessas idas e vindas conheci e até participei do famoso "Cerco de Jericó", um evento que acontece em seio católico. O intuito é quebrar barreiras. O público é composto principalmente por carismáticos, simpatizantes e alguns desavisados de plantão que tiveram o senso crítico tolhido, os alienados. Há quem, ingenuamente, busca uma resposta neste evento e sem perceber o quanto lhe é imposto cede ao que lá se ritualiza em um jugo pesado e incerto. São várias explicações sobre o assunto mas não vou me ater a detalhar o que acontece lá. Para quem se interessar eis o universo internético para sanar a curiosidade ou se preferir que se confira de corpo presente e tire suas próprias conclusões.

Na primeira vez que participei confesso que fiquei assustado com algumas coisas que li no roteiro que se repetia durante todos os dias do evento. O que mais me impressionou foi quando a leitura que se fazia comunitariamente a uma só voz com todos os presentes, numa das linhas assim dizia: "Senhor Jesus, peço-vos que quebre as muralhas das doenças, sejam elas quais forem, principalmente o câncer, leucemia, depressão e AIDS, dependência do álcool, prostituição e homossexualismo; [...]". 

Bom, primeiro que prostituição é uma das mais antigas profissões desde o Egito antigo. Hoje podemos considerar como escolha ou em muitos casos a impossibilidade da escolha, em outras palavras, a necessidade real de sobrevivência. Então a reza deveria ser para quebrar as muralhas do sistema e principalmente a hipocrisia dos mantenedores desse sistema, que dificultam à pessoa uma opção mais digna perante e com a sociedade. 


Segundo que homossexualismo já soa mal simplesmente por seu sufixo, e apesar da ciência já ter provado e comprovado tal termo ainda insinua uma doença. O mais adequado para o estudo seria a "homossexualidade" mas é a "homo-afetividade" que está em evidência e é coerentemente aceita. Não aprofundarei no significado de cada termo. Manterei-me nas linhas da denúncia do que se faz em certos redutos cristãos e que hoje conota falta de informação e até mesmo discriminação.

Além do susto e da má impressão ainda tive um terceiro momento, o da preocupação. Ali presente estava uma pessoa em busca de algo. Literalmente assumido em sua sexualidade, um rapaz que não apenas trajava roupas femininas mas seu próprio corpo possuía tais características tão nítidas, no fundo, creio eu, buscava respeito, dignidade, espaço, aceitação, no ambiente religioso que certamente crescera. O que passaria na cabeça dessa pessoa ao ouvir uma comunidade recitando tais palavras? No mínimo, decepção, tristeza, rejeição e todas as consequências possíveis para toda a sua vida.

Hoje posso concluir muitas coisas diante do que vivenciei e experimentei. O Cerco de Jericó teve um motivo para ser criado. Porém, como tudo na história tende a mudar e tomar proporções inimagináveis, com este não fora diferente. O exagero e o fanatismo, por mãos ultra-fundamentalistas, tomaram as rédeas da situação e o distanciou do real objetivo de sua concepção. Passou a ser muito mais um instrumento de exclusão e segregação do que de cura e libertação. 

Constatado a ciência que "homossexualismo" não é doença, eis que uma voz no deserto é ouvida diretamente do centro do catolicismo. O Papa Francisco tem dado abertura ao diálogo e mostrado a importância de se respeitar cada pessoa em sua condição. Seu apoio à causa tem sido de grande valia principalmente dentro do cerco da própria igreja. Criticado pelos radicais que levam tudo ao pé da letra e aclamado pela maioria religiosa, sendo uma parcela de outras denominações e confissões, Francisco tem incomodado alguns segmentos em prol de se dar voz e vez aos sem opção alguma. 

Diante disso a necessidade de se refazer o circuito do Cerco é iminente. Continuar na mesma toada é que não pode e não deve. É preciso reavaliar todo o ritual uma vez que não passa pelo crivo magisterial. Mais do que isso, é preciso compreender acerca do cuidado que se deve ter para não construir muralhas ao invés de pontes, prisões à libertações, manipulação à autonomia do pensamento e liberdade. 

Em nossa sociedade é fácil identificar os diversos tipos de Cercos existentes, tanto os físicos como os sociais, os visíveis e os invisíveis. Não precisa de muito esforço para se concluir e obter um resultado. Chega a ser uma questão de lógica matemática. Uma vez que o cerco selecionou os certinhos da lei, quem não teve seu nome enaltecido na lista dos reavivados simplesmente fora segregado, excluído e banido sem saber para onde ir e vir e como complemento ao jugo ainda recebe olhares a apontamentos que lhe alvejam a alma. Em outras palavras, ficou cercado do lado de fora!