segunda-feira, 22 de abril de 2024

Resenha: Pedras, plantas e outros caminhos



"Por-se a caminho." Acredito que essa seja a frase que representa o que de fato possibilitou todo o desvendar de uma relação construída pela acompanhante terapêutica (AT) Taís e o paciente Ney. Foi mergulhando no mundo desse rapaz que ela permitiu o seu protagonismo em todas as formas, fases e faces apresentadas. Ora frio, ora embrutecido, ora passivo, ora ciente do mundo ao seu redor e capaz de dialogar e expor seus sentimentos. 

Segundo relato da psicóloga do CAPES, existem dois Ney's, antes e depois de conhecer a Taís. Não houve nada de exorbitantemente diferente no trabalho realizado. Na verdade, não foi trabalho, pois o que ali se construiu foi além dos manuais. A proximidade, o sentar-se junto, o contato físico, o permitir seu protagonismo em cada momento, diante de cada sentimento e humor, possibilitou a confiança do rapaz para com a AT.

Existe ali um carinho, que pode se chamar de especial. Impossível não criar esse vínculo em tais condições. Mais impossível não se misturar com o que é considerado loucura aos olhos da sociedade. É preciso ter essa loucura para romper barreiras, essa louca coragem de lutar por mudança. Taís assumiu seu papel, tornou-se coadjuvante, elevando seu paciente ao grau máximo do reconhecimento. Permitiu-o ser quem ele era, em cada momento, são ou não. Ela estava lá. Em sintonia. Com confiança.

Ali, em tais condições e situação, mesmo ele sendo usuário do Sistema de Saúde, sua recusa ao tratamento era respeitado, pois já havia sofrido intervenções que o traumatizaram a ponto de desconfiar de tudo. Descer ou elevar-se ao mesmo nível de sua realidade foi uma verdadeira construção sinfônica de tijolos e notas, com muita ousadia, tato, sensibilidade, empatia, respeito e coragem. E assim sendo, ali se trabalha a desconstrução e a reconstrução, visando sempre a redução de danos.

Taís foi maestra, mas o palco e os holofotes foram para o Ney. Talvez, sem se dar conta de seu papel, não imagina o que de fato transformou na vida dos que o acompanharam durante essa produção. Talvez, esse seja o significado real de toda existência, "por-se a caminho". Respeitando a condução das conversas, bem como aproximação que sempre se dá conforme a vontade do paciente, ela permite que ele atue de acordo com sua real necessidade. E, sem perceber-se, ele sempre se aproxima, de uma forma ou de outra, pois sente que é observado, sente que existe ali alguém por ele. 

O misturar-se é algo que possibilita um crescimento sem se perder, porém, nunca saindo da mesma forma que entrou. Ambos foram tocados e transformados, inclusive quem acompanhou. Existe então um enriquecimento imensurável de humanidade, que nos é devolvido através dos passos que o outro dá a partir daquilo que nos dispomos a doar. 

Há momentos de delírio em que notavelmente ele está transtornado por uso de bebidas ou outras coisas. Ainda assim a AT permanece ao seu lado. Não interfere, não o interrompe, mas assiste firme sem muita interpelação. A vida solitária de Ney muitas vezes o mostra como sensível às pequenas formas de vida e os cuidados com a natureza. Cuida da árvore como se fosse exclusivamente sua, impulsivamente delegando-se como protetor dela. Não admite pedras ao redor da árvore e as retira com brutalidade. Questiona o zelador da praça. Ney não quer que sufoquem sua árvore com pedras. Ela precisa de espaço, precisa respirar, precisa de sua solidão, assim como ele.

Apesar de ter sua avó, família, ainda assim prefere a praça como moradia. Como disse a Taís, "a praça é um lugar de passagem". Ali as pessoas passam e raramente param. Se param é por pouco tempo. Ney se tornou parte da praça. Praça e Ney são passagem e miragem, respectivamente, aos olhos dos transeuntes, que tão logo passam, já o perdem de vista, o esquecem. 

Em dias de sobriedade sua voz canta com a alma. Explode em sentimentos de realidade e normalidade social. Taís o admira, instiga a cantar mais. Ela o acompanha. Mais do que fazer seu papel de AT ela se coloca em pé de igualdade, ora na plateia, ora coadjuvando no palco, no pequeno banco de praça que faz parte de todo o seu cenário cotidiano. Ela lê os sinais, ora para se aproximar, ora para se distanciar. Esse é o respeito que permitiu o elo de confiança.

Seu mundo é restrito, restrito por ser um recorte pequeno nesse reduto de praça, restrito pelas próprias restrições que a vida impôs desde seu nascimento. Seu mundo é a praça, e nesse mundo, poucas flores, raras pessoas, somente pedras e plantas compõem seu jardim, sua passagem, suas miragens. Muitos olhares em que poucos enxergam. Dentre esses, raro é quem se pôs a caminho. 


Reflexão Crítica sobre o filme Pedras, plantas e outros caminhos apresentado na disciplina de PSICOPATOLOGIA II, Profª Clara Moriá, 7º p. Psicologia, UNITRI, por Ailton Domingues de Oliveira.