quinta-feira, 23 de junho de 2016

Convenção nos autos da praça


No acordar do meio dia eles já se colocam a postos em suas trincheiras. Levam seus baixeiros, bornais, mantas e outros apetrechos e estendem sobre a grama da praça. Em seus cantis estão o líquido da misericórdia. Derivações do álcool, das mais concentradas possíveis. À margem do último subnível das mazelas sociais estão as personagens mais destiladas possíveis. Entorpecidas desde sempre, celebram o prazer de não ser ninguém.

Em outra margem, no que restou de uma quadra de esportes, num canto qualquer desta praça, os garotos disputam uma partida fundamental de futsal. Cada jogo é como uma disputa pelo título de um campeonato mundial. A maioria ali chegou após o apito final da escola avisar que a aula deste dia enfim encerrara-se. Alguns ousados desbravadores conseguiram cabular as últimas aulas e desfrutaram mais de seu tempo neste reduto para poucos. Outros ainda, sequer compareceram à escola. Optaram pela quadra da praça. 

Um casal de namorados trocam carícias sentados num banco sob a sombra das grandes árvores. Cena incomum para os dias de hoje. Estão desprovidos de tempo e cegamente tranquilos no cenário que também protagonizam. Eles conversam, se olham, se beijam e o universo para em seu mundo avermelhado de paixão. O único barulho que escutam é dos descompassados corações vibrantes. Nem mesmo o mau cheiro da mistura de maconha que segue carregado pelas rajadas leves de vento é capaz de roubar-lhes a atenção.

Aglomerados noutro pedaço desta praça, num espaço fitness para jovens, adultos e idosos, estão meninos e meninas que, pelo visto, encontram-se sagradamente na mesma hora e local todos os dias após a aula. Papos retos, músicas de celular, muita conversa alta e a necessidade ímpar das relações dessa idade. Estar ali, aparenta estar entre os melhores da turma, os seletos, os mais-mais. Deste grupo, possíveis futuros casais, com certeza, se formarão. Impera no momento as amizades das quais algumas poderão entrar no rol das verdadeiras e eternas.

Na praça não existem flores. Apenas o verde das gramas e das árvores. As maritacas e outros pássaros dividem o topo dos galhos quando não rasgam o baixo céu. O que destoa é o barulho infernal dos motores e seus rastros de fumaça. Nada mais incomoda tanto que a pressa dos motorizados que ignoram todas as regras sociais e as leis que os monitoram. Por isso, prefiro a praça com seus diversos grupos, principalmente o dos mestres e filósofos que agem segundo o único líquido que os mantém sóbrios e protegidos da sociedade: o álcool.

Porém, esses assíduos oradores da praça, nobres e desprovidos com o politicamente correto, são inúteis para todos, para o sistema, para nós. Não passam de pobres desgraçados pela vida. São desprezíveis para as religiões. "Deus, no mínimo, os castigou severamente por estarem aonde estão neste momento. Estão colhendo o fruto de suas escolhas, com certeza...", dirão os hipócritas da fé, da moral e das leis. Há quem pague a passagem para outras cidades, só para não os verem na zona da praça.

Não vejo a vadiagem entre essas distintas pessoas. O que vejo são histórias regadas de derrotas, impressas em olhares e com cicatrizes pelo corpo. Estar aqui neste mundo deve ser um tormento. Acordar e ver as caras de paisagem que ofuscam a natureza ao seu redor é também um martírio diário. E assim caminhamos nós por entre praças. Que não nos falte o líquido do livramento da hipocrisia e do ópio social, pelo amor de Deus!