terça-feira, 24 de maio de 2016

Cartas em Tempos (XIII) - Das matas


"Acordamos antes do costume com o barulho dos tiros que partem de todos os lados.
Como num ritual de guerra última, os homens pegam arcos, flechas, lanças, facas e todas as armas possíveis e se dirigem para o limite entre a mata e a cerca que os capangas do fazendeiro colocaram.
Mulheres, crianças e os mais velhos se dirigem mata adentro.
Temos um lugar ainda desconhecido pelos brancos.
Nosso chão sagrado nos protege porque nós também lutamos para protegê-lo.
Hoje tem mais gente do que outros dias, lá do outro lado da cerca.
Já pedimos ajuda para outras tribos.
Se faz necessário...
Aqui, somos todos irmãos.
As tribos se unem para proteger uns aos outros.
É o destino de cada um aqui.
Ficamos escondidos, na espreita.
Nossas armas são limitadas frente ao poder de fogo dos capitães do mato.
Estão alvoraçados.
Nada está normal.
Eles avançam rápido.
Estão nos dizimando...
Somos obrigados a recuar...
Atearam fogo e as chamas adentram a mata.
E assim eles tomam um pouco mais de nossas terras.
Os latifúndios políticos logo mandam suas máquinas para devastar ainda mais...
Não somos nada para este país...
Desde sempre tomaram nossas terras...
Somos o encalço aos olhos deles...
Mas enquanto houver um de nós que ainda respira, haverá luta.
Vigiamos dia e noite.
Nosso povo só quer viver...
Viver em paz na terra que é nossa.
Caros companheiros de tantas guerras.
Essa noite decidimos sacrificar tudo nesta batalha que agora acontece.
Os mais velhos, junto com as mulheres e crianças já partiram.
Estamos ornados para a guerra.
Preparamos nosso espírito para tombar o inimigo ou entregá-lo à nossa mãe terra.
Outras tribos já se ajuntaram a nós.
Portanto, essa batalha terá sangue, mas não será só o nosso...
Daqui me despeço, com a tristeza pelos que vão sucumbir ao poder de fogo inimigo...
Mas com muita esperança de que essa luta não será em vão...
Já perdemos muitos irmãos que preferiram se enforcar a ter que passar pela humilhação de sair de suas terras...
Lutaremos por cada um destes...
Não findaremos nossa existência, pois nossos filhos continuarão esse legado...
Nossas mulheres e os mais velhos cuidarão deles...
Adeus meus amigos pela dor...
Eles avançam...
E nós também..."