segunda-feira, 23 de maio de 2016

Cartas em Tempos (IX) - Do sertão


O caminhar é sempre solitário.
Estar a só nesta vereda também é prazeroso.
Deus há de ser só.
Mas há de ser três também.
E nós também...
Ele há de ser um pouquinho em cada um de nós.
Há de ser a natureza, os bichos, pois tudo, segundo sempre escutei dos meus avôs, é obra desse Deus.
Tem gente que tem mais bondade Dele.
Outros tem menos e além disso carregam mais maldade do tinhoso.
Deus e diabo se misturam no sertão e no coração das pessoas.
Um dia Deus no comando.
Noutro, o diabo infernizando.
E nesses dias que a perversidade está alvoraçada neste cangaço, há de sobrar corpo tombado na secura deste chão.
É guerra meus queridos, e bruta feito coice de burro bravo.
Tem guerra que não se vê.
Acontece na espreita da vida da gente.
Na lida de cada dia.
Na ausência das coisas necessárias pra sobreviver.
Não espero nenhum doutor engravatado que volve seus olhos pra este inferno de Deus.
Deus aqui se compadece pelo olhar dos conterrâneos.
De alguns somente.
Nem todo mundo tem vontade de ter caridade.
Há quem viva pra si e nada mais.
Aqui, a gente já pegou em armas.
Mas foi pra debandar contra uns forasteiros que vieram a mando dos engravatados.
Disseram que a terra já tinha dono e que nós éramos invasores.
Deram prazo pra gente se retirar.
Cada dia ameaçavam um tanto de gente.
Aqui o povo é ignorante mas não é massa de manobra nem desinteligente.
A notícia se espalhou logo.
E tão breve formamos um batalhão de gente disposta a morrer pelo chão.
Ninguém noticiou o episódio.
O sertão também ajuda aos filhos do cangaço.
Os pistoleiros a mando do poder não conheciam este nosso chão.
Nossa sorte.
Emboscamos eles.
Os que não se aleijaram pelas balas de espingarda, tombaram direto nos braços do capeta.
Não perdemos nenhum de nossa gente.
Do lado de lá, poucos se sobraram.
E destes, nunca mais voltaram.
Ganhos fama pelo sertão.
Que aqui tinha um batalhão de jagunço que brigava feito o cão.
Justiça foi feita!
Meus queridos de outras guerras, de confins que eu desconheço além desse meu sertão...
Que vocês tenham sempre a justiça divina no coração.
E não esmoreçam frente aos inimigos.
Se é pra brigar, que sejam dignos, honrados e vencedores.
E nenhum aprendiz de diabo vai lhes fazer afronta."