sábado, 21 de maio de 2016

Cartas em Tempos (IV) - Da guerra


"Uma vida entrincheirada. 
Cheiro de fumaça e o fogo após a explosão de uma bomba.
Já não sei mais dos dias.
Aqui tudo se resume ao excesso do tempo.
Dias de frio intenso.
Dias de de calor escaldante.
Minha cama é a minha roupa.
Meu sustento está num cantil ao qual me sirvo de doses homeopáticas de água.
Minha reza já não faz tanto sentido.
Se Deus está assistindo a tudo isso deve estar como um telespectador omisso.
Acredito que os meus adversários também fazem preces ao seu deus. 
Se for ao mesmo, acredito que Ele deve se embaralhar ao conceder a vitória a um dos lados apenas.
Se forem deuses diferentes, talvez outra batalha aconteça noutras dimensões...
Agora é pausa no fronte.
Momento de êxtase causado, talvez, pelo cheiro das bombas de gás.
Não sei se estou aqui a dias, meses, anos.
Isso parece não me importar mais.
Estar aqui foi uma opção quando nada mais me era.
Quis dar rumo e sentido desviando-me de tudo e de todos.
Embarquei consciente.
E cheguei num limite inimaginável.
Aqui é o fim do mundo.
Creio que voltei a sonhar com minha antiga vida.
Rua tranquila numa casa do interior.
Soltando pipa, bolas de gude, taco, futebol, tudo isso na rua.
Casas sem muros altos.
A rua era uma comunidade...
É um tempo que não volta mais.
E sei que quando eu partir daqui, andando ou carregado, estarei acompanhado por muitos fantasmas deste lugar.
A guerra irá me acompanhar pra sempre, eu sei.
Suor, sangue, lágrimas serão como pinturas em minha mente.
E Deus... não sei.
Talvez prefira ser adorado nos templos.
Talvez exagerou ao dar tanta liberdade.
Talvez acredite que precisamos da dor para viver o amor.
Talvez já saiba que no final, encontraremos paz...
Talvez... 
É fim de tarde.
Apesar das fumaças, do cheiro de terra e de pólvora o céu está mais claro.
Será uma noite de estrelas.
O cessar fogo do fim de tarde serve também para enterrar os companheiros mortos.
Tenho saudade de casa..."